30 dezembro 2021

"O Festival do Amor" - uma apologia ao cinema do genial Woody Allen

San Sebastian, na Espanha, é o palco desta produção que trata de arte, família, casamento, traições e ciúmes (Fotos: Victor Michels)

Mirtes Helena Scalioni


Primeiro, é preciso dizer que, talvez com mais veemência do que os demais, o filme "O Festival do Amor" (“Rifkin’s Festival”) é uma apologia ao cinema. Mais do que uma homenagem, uma apologia. E como são muitas as citações e referências a clássicos, principalmente europeus, cada um vai encontrar os seus preferidos. 

De “Um Homem, Uma Mulher” (1966) a “Jules e Jim – Uma Mulher Para Dois” (1962), passando por “O Anjo Exterminador” (1962), está tudo lá para quem se dispuser a descobrir. O filme estreia dia 06 de janeiro nos cinemas, mas a partir desta quinta-feira (30/12) acontecem várias pré-estreias, inclusive em salas de Belo Horizonte.


Mas não se engane. Não é preciso ser cinéfilo de carteirinha para apreciar o sempre genial Woody Allen, que desta vez usa o protagonista Mort Rifkin, seu alter-ego, para viajar numa história que junta arte, família, casamento, traições e ciúmes. A mistura, balanceada com maestria, promete e insinua, desde o início, uma boa história que, claro, só podia sair da cabeça de Allen. 


Inseguro em relação à fidelidade de sua bela mulher, a publicitária Sue, o crítico e professor de cinema Mort Rifkin (Wallace Shawn), desconfia que ela, interpretada por Gina Gershon, está tendo um caso com o charmoso diretor Philippe (Louis Garrel). 

Afinal, eles estão num “San Sebastian Film Festival”, na encantadora cidade litorânea espanhola que faz fronteira com a França. O cenário paradisíaco, com suas praias, ilhas e construções históricas, é um convite constante à paixão.


Enquanto defende com unhas e dentes a supremacia artística do cinema europeu com seus Godard, Truffaut, Fellini, Bergman, Buñel e demais, Mort usa sua eloquência intelectual – às vezes carregada de prepotência – para humilhar os ignorantes ou os que pensam diferentemente dele. E enquanto lida com seus sonhos e pesadelos em preto e branco – como convém a um legítimo Woody Allen – visita e tenta prestar contas com o passado.


Não por acaso, acontece que Mort é levemente hipocondríaco e acaba se apaixonando pela médica Jo Rojas, vivida pela bela Elena Anaya, que ele procura por causa de uma dor no peito. Ela, por sua vez, vive um casamento confuso e sofrido com um artista plástico espanhol, do qual não consegue se desvencilhar. Está armada a rede de desencontros e confusões.

Quem não quiser se arriscar a buscar as referências e citações de “O Festival do Amor”, vai se deliciar da mesma forma com mais um típico e autêntico Woody Allen, com suas eternas questões existenciais e filosóficas sobre a vida e a morte e, principalmente, sobre a sempre questionável transitoriedade do  amor.


Ficha técnica:
Direção e roteiro: Woody Allen
Distribuição: Imagem Filmes
Exibição: Somente nos cinemas
Duração: 1h32
Classificação: 14 anos
Países: Espanha / EUA / França
Gêneros: drama, comédia romântica

29 dezembro 2021

Em um mundo cada vez mais burro, "Não Olhe Para Cima" é o óbvio que precisa ser dito

Com um elenco estelar, produção está sendo considerada uma das melhores de 2021 da plataforma de streaming (Fotos: Niko Tavernise/Netflix)


Jean Piter Miranda


Os astrônomos Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) e Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) descobrem um cometa no sistema solar. Eles calculam que esse corpo celeste vai atingir a Terra dentro de seis meses e acabar com a vida no planeta. Os dois então levam a notícia para a presidente dos Estados Unidos, Janie Orlean (Meryl Streep).

O assunto vai parar nos noticiários e nas redes sociais. E isso é só o início do caos. Essa é a história de “Não Olhe Para Cima” ("Don't Look Up"), produção da Netflix de US$ 75 milhões que está entre os mais acessadas e comentadas desde a sua estreia, no dia 24 de dezembro.


Para início de conversa, o filme é sim sobre os dias atuais. E para os brasileiros, dá até a impressão de que a estória é sobre o Brasil. A começar pelo negacionismo, pelas pessoas que não confiam na ciência. Mais do que isso, gente que cria milhares e milhares de teorias da conspiração sobre um tal “sistema” que controla o mundo. Em um tempo em que todos têm vez e voz nas redes sociais, a desinformação passa a ter até mais peso que as informações passadas por cientistas.


A partir daí, é tudo um show de absurdos. Espera-se que a presidente do EUA faça uma missão para dar um jeito de destruir o cometa antes que ele chegue à Terra. Mas ela diz que vai  esperar e avaliar. Ela pensa só nela e dá prioridade às eleições, como se o assunto do cometa não fosse uma urgência mundial. Os dois astrônomos são vistos com desconfiança e a descoberta deles só é validada depois que pesquisadores de universidades maiores e mais renomadas confirmam os dados.  


A imprensa não dá a devida importância ao assunto. Está mais preocupada com engajamento nas redes sociais e monetização do que com o dever de informar. Apresentadores de TV (interpretados por Cate Blanchett e Tyler Perry) se comportam como comediantes. Celebridades se expõem demais. 

A polícia age para atender aos interesses pessoais de um governante e não de acordo com a lei. Pessoas sem qualificação ocupam cargos de confiança. Tem também a idolatria de parte da população por militares e por armas. Gente que prega o fim do politicamente correto. E tem até cientista que se deixa seduzir pela fama.


Tem gente que diz que o cometa não é isso tudo. Outros que dizem que nem existe cometa. Ideias que são reproduzidas por autoridades, políticos, comunicadores e influencers. Todo mundo querendo aproveitar um pouco do assunto do momento para ganhar seus likes, curtidas, fãs, seguidores e, claro, aumentar sua monetização. É a regra do jogo, é como funciona a economia da atenção nos dias atuais. É muita coisa ao mesmo tempo pra processar. É como navegar pelos trends do Twitter.  


E por falar em dinheiro, tem bilionário na história, que vende a imagem de um bom e simples cidadão que só quer fazer do mundo um lugar melhor para todos. Que patrocina campanhas políticas e depois manda mais que os próprios governantes. Bilionário que é idolatrado e tem até fã clube. É um show de absurdos que a gente só se dá conta quando está na ficção. No dia a dia, o povo já se acostumou, já normalizou. Mas na ficção, incomoda muito.

Di Caprio e Jennifer Lawrence estão ótimos. Meryl Streep brilha como sempre. Cate Blanchett está sensacional como a apresentadora de TV Brie Evantee, com o rosto cheio de plásticas e botox. Mark Rylance manda muito bem no papel de Peter Isherwell, o bilionário da tecnologia com complexo de grandeza. 


Mas o destaque fica mesmo por conta de Jonah Hill, que faz Jason Orlean, o filho da presidente, mimado, arrogante, escroto e meio burro. Não é exagero dizer que é a melhor atuação da sua carreira, isso num elenco com muitas estrelas, onde Ron Perlman (o astronauta Benedict Drask), Ariana Grande (como a cantora Riley Bina) e Timothée Chalamet (o adolescente Yule) quase passam despercebidos, assim como Himesh Patel (Phillip). 


“Não Olhe Para Cima” é uma grande produção. É uma crítica ao sistema político, econômico, à imprensa, às redes sociais e ao negacionismo. É uma crítica à sociedade como um todo, que tem ficado cada vez mais alienada e até mesmo mais burra, misturando política, com religião, com patriotismo, com anticiência e outras coisas mais. 

É comédia, é entretenimento, e pode ser uma experiência bem incômoda para muitos. Mas é um filme necessário que vai deixar todo muito bem pensativo. É o obvio que precisa ser dito em forma de ficção pra tentar ser ouvido.  


Ficha técnica:
Direção e roteiro: Adam McKay.
Produção e exibição: Netflix
Duração: 2h25
Classificação: 16 anos
País: EUA
Gêneros: Comédia / Ficção
Nota: 4 (de 0 a 5)