30 setembro 2023

“Marinheiro das Montanhas” e “Nardjes. A” lançam olhar poético sobre a memória e o futuro da Argélia

Novos longas de Karim Aïnouz chegam simultaneamente às telas dos cinemas brasileiros (Fotos: Divulgação)


Carolina Cassese
Blog no Zint

Já há algum tempo que, em entrevistas concedidas à imprensa, Karim Aïnouz ("O Céu de Suely" - 2006, "Praia do Futuro" - 2014, "A Vida Invisível" - 2019) vez ou outra deixava escapar detalhes de um projeto: o de registrar uma jornada de descobertas a serem feitas in loco no país responsável por 50% de seu DNA: a Argélia. Colocado em prática, o trabalho chega agora às telas dos cinemas brasileiros com o título "Marinheiro das Montanhas". 

A novidade é que a produção (que, no Brasil estreou na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, tendo sido exibido anteriormente no Festival de Cannes, fora da competição oficial) entra em circuito junto com outro longa assinado por Aïnouz: "Nardjes A.". 

Os dois filmes podem ser conferidos na sala 3 do Una Cine Belas Artes, o primeiro com sessão às 20h40 e o segundo com sessão às 15h50.


Nascido em Fortaleza, Karim Aïnouz é fruto da relação de uma brasileira - de nome Iracema - com um argelino, Majid. Os dois se conheceram nos Estados Unidos, mais precisamente no estado do Colorado, no início dos anos 1960. No entanto, o casal acabou se separando e Karim só foi conhecer o pai no começo da vida adulta. 

Iracema faleceu em 2015 e o genitor do cineasta mora há tempos na França, tendo tido uma filha - Kamir - do casamento com uma francesa. Vale dizer que Kamir Aïnouz também é cineasta e esteve no Brasil em 2021 para lançar o filme "Charuto de Mel".


Sobre "Marinheiro das Montanhas", é importante destacar que, ao partir para a terra natal do pai, Karim decide ir sem a companhia dele. E em vez de optar pela comodidade de viajar em um avião, prefere fazer a travessia - partir de Marselha - rumo a Argel, por mar. A viagem foi realizada em 2019, quando Aïnouz estava com 54 anos.

O desembarque se dá na capital do país, mas o objetivo principal é chegar na Cabília, a cidade natal de seu pai. Durante todo o percurso, o espectador se depara com as lembranças da infância e da juventude de Karim, narradas por ele próprio, intercaladas com as descobertas do cotidiano de um país que, embora entranhado em sua existência, era ainda bastante desconhecido para ele. Aïnouz não hesita em registrar cenas e figuras com as quais se depara aleatoriamente, pelas ruas ou estabelecimentos comerciais.


Em Cabília, ele logo percebe que seu sobrenome é bastante comum por lá (o diretor chega a encontrar um homônimo na visita). Karim acaba sendo identificado como o filho de Majid, e, assim, entra em contato com parentes, que abrem as portas de suas casas para o visitante adentrar seus domínios. 

Nesta visita à própria história, a narração do diretor conduz o espectador tanto para o interno de sua mente quanto para o que está se descortinando diante de seus olhos.


Ainda sobre sua condução, é interessante o exercício que o cineasta faz ao imaginar como seria a vida do “Karim ao contrário”, ou seja, como teria sido passar a vida toda na Argélia e decidir conhecer Fortaleza aos 54 anos. 

Bastante explorado em narrativas sobre migrações, o tema do “sujeito dividido” ganha um tom poético e inventivo em “Marinheiro das Montanhas”.

Ao fim do longa, é difícil não se lembrar também de Maïwenn Le Besco, atriz francesa de origem igualmente argelina que, poucos anos atrás, lançou o filme "DNA", exibido no Brasil. Neste filme, ela interpreta Neige, personagem que também vai atrás de suas raízes na Argélia (nesse caso, trata-se de uma ficção).


Ficha técnica:
Direção: Karim Aïnouz
Produção: Videofilmes e coprodução Globo Filmes e Globo News
Distribuição: Gullane
Duração: 1h38
Exibição: sala 3 do UNA Cine Belas Artes, com sessão às 20h40
Classificação: 12 anos
Países: Brasil, Alemanha, França, Argélia e Qatar

"Nardjes A."

Já o longa "Nardjes A.", o outro lançamento do diretor, opta por um recorte referente à mesma Argélia: os protestos populares nas ruas de Argel, contrários ao então presidente Abdelaziz Bouteflika (1937-2021), que estava no poder há mais de 20 anos. 

No filme, de 2019, Karim acompanha um dia na vida da jovem argelina que batiza o filme em meio a todo o movimento que o surpreendeu na visita ao país.

A protagonista representa, pela câmara de Aïnouz, os milhares de jovens que, em vários países árabes, se encontraram (encontram) em praças e ruas para clamar por mudanças. Sob a pressão dos protestos, Bouteflika acabou renunciando.


"Nardjes A." foi exibido no Festival de Cinema de Berlim na edição 2020. Neste projeto, Karim, usando um smartphone, consegue obter imagens impressionantes. 

Ao mostrar a juventude, ele imagina um futuro que pode ser diferente daquele no qual foi gerado, quando a figura da mulher sofria opressões mais severas. Dessa maneira, junto a uma declaração de amor à mãe, ele saúda as novas mulheres, representadas por Nardjes.


No material relativo ao filme, enviado à imprensa, Karim declara: "Assim que conhecemos Nardjes, à época com 26 anos, de alguma forma reconhecemos o filme. A princípio o que me atraiu foi a possibilidade de, através de sua vida, capturar uma visão mais subjetiva do que estava acontecendo. Filmar essas 24 horas ao seu lado foi a maneira como conseguimos nos aproximar do significado do que estava acontecendo nas ruas".

O diretor falou ainda sobre a sua intenção de realizar um filme "ousado, alto, barulhento, rápido e voraz", que representasse o tom das manifestações: “As manifestações de Argel ressoam além da Argélia. Elas mostram uma geração que teve seu futuro roubado, mas ainda encontra na esperança um lugar fértil para imaginar o amanhã". 

As reflexões presentes nos dois filmes, portanto, não se limitam ao território argelino: há muito o que reconstruir nestas terras, do outro lado do oceano.


Ficha técnica:
Direção: Karim Aïnouz
Coprodução: Canal Brasil, Watchmen Productions (Alemanha), MPM Film (França), Show Guest Entertainment (Argélia) e Instituto de Cinema de Doha (Qatar)
Distribuição: Gullane
Duração: 1h20
Exibição: sala 3 do UNA Cine Belas Artes, com sessão às 15h50
Classificação: 10 anos

29 setembro 2023

"Notícias Populares" resgata o jornalismo sensacionalista dos anos 1990

Série nacional celebra os 25 anos do Canal Brasil com sete episódios a cada sexta-feira, a partir de hoje
(Fotos: Arthur Costa/Canal Brasil)


Eduardo Jr.


O jornal “Notícias Populares”, que fez fama em São Paulo pelas manchetes e pautas escandalosas, está de volta aos holofotes. Mas agora em formato audiovisual. A publicação, que circulou entre 1963 até 2001 virou série, batizada com o mesmo nome. A estreia acontece nesta sexta-feira (29) e a primeira temporada tem sete episódios gravados, com exibição a cada sexta-feira, sempre às 22h30.

A produção é parte das comemorações dos 25 anos do Canal Brasil e também será disponibilizada no Globoplay +. André Barcinski e Marcelo Caetano assinam a criação e o roteiro da obra, que traz de volta algumas das matérias que viralizaram (antes mesmo de o termo entrar na moda).


Para quem não conheceu o jornal, será a chance de se espantar e se divertir com casos como o do “bebê diabo”, a “revolta das prostitutas”, ou tentar desvendar alguns easter eggs, como o da atriz da novela das oito que mantinha um romance regado a drogas com outro ator durante as gravações.

Caminhando entre a comédia e o absurdo, a série traz sete capítulos, de aproximadamente 45 minutos cada. A história se passa em 1993, uma época em que assinatura de jornal não era tendência, sendo preciso fazer com que as notícias vendessem o máximo possível de jornais impressos. 

“Notícias Populares” é uma série de ficção, baseada no humor popular e nos excessos. Um exemplo disso vem logo nas primeiras cenas, que mostram um homem de cueca em pleno ambiente de trabalho, e na parede, muita mulher pelada. Está dado o recado de que aquele é um ambiente machista.


A trama começa a se movimentar com a chegada de uma correspondente internacional, que sai de Paris para modernizar o jornal (que é uma subdivisão de menor prestígio da Folha de São Paulo). 

O editor Matias, vivido por Rui Ricardo Diaz (“Lula, O Filho do Brasil”, 2009), apresenta essa nova colega como uma profissional que veio “direto do rio Sena para o rio Tietê”.

A reação de incredulidade que temos diante dessa frase é a mesma que se estampa no rosto da jornalista Paloma Fernandes, personagem da atriz Luciana Paes (“Divórcio”, 2017) ao se deparar com aquela redação bagunçada. 

E a redação é um caso à parte. O cenário poluído, com muitas cores, foi reconstruído no prédio da Folha de São Paulo, a partir de imagens da antiga sala onde o jornal funcionou.


Também foram resgatados alguns objetos originais da equipe do "NP". Chega a lembrar Almodóvar. Inclusive, uma das personagens do cineasta espanhol, Andrea Caracortada (papel de Victoria Abril, no filme “Kika”, 1993), serviu de inspiração para Bruna Linzmeyer (“O Filme da MinhaVida”, 2017) dar vida a Rata, uma repórter de TV que atravessa o caminho do periódico.

O jornal marcou seu nome na história não só por trazer assuntos que paralisavam trabalhadores em frente às bancas de revistas, mas também por falar a língua do povo, se distanciando das redações silenciosas e sem emoção, frequentemente retratadas em Hollywood.

Na coletiva on-line para lançamento da série, conversamos com os diretores e elenco, e descobrimos que o "NP" teve a primeira colunista social negra. O papel da personagem Greta ficou a cargo da atriz Ana Flávia Cavalcanti (“Corpo Elétrico”, 2017).


O elenco conta também com Ary França (“45 do Segundo Tempo”, 2022) e Rejane Faria (“Marte Um”, 2022). A atriz mineira vive a fotógrafa Marina, e por meio dela se percebe que o "Notícias Populares" atuava numa ética diferente. 

Em nome de uma boa foto, ela pede pra polícia alterar uma cena de crime, virando para a câmera o rosto de um bandido, morto por um justiceiro que era considerado herói na comunidade.

Com isso, a série nos convida a refletir que isto não é fator de condenação para o jornal. Segundo Rui Ricardo Diaz, o "NP" era um microcosmo do país. 

Se, assim como nos anos 1990, ainda hoje convivemos com pedidos de vingança contra a criminalidade, com manchetes que parecem ter sido inventadas de tão absurdas, o jornal está errado em refletir aquilo que somos enquanto sociedade?


A criação de conteúdo e os métodos de investigação do “Notícias Populares” foram traduzidos para as gerações atuais graças ao conhecimento do diretor. 

Barcinski foi repórter do “NP” e, além de ter vivido parte daquela história, pesquisou mais de mil exemplares para selecionar quais seriam as histórias representadas na série. O resultado promete divertir.

Nos episódios liberados para a equipe do Cinema no Escurinho, algumas subtramas ficam pelo caminho, mas é possível que sejam esmiuçadas no futuro, caso se concretize uma segunda temporada. 

A gerente de programação, aquisições e projetos do Canal Brasil, Marina Pompeu, disse que será preciso um teto financeiro mais favorável para executar uma continuação da série. Para um jornal que estampou na capa a espantosa manchete “Jacaré cocô levou meu filho”, material é que não falta!


Ficha técnica:
Direção: André Barcinski e Marcelo Caetano
Produção: Kuarup Produção e Canal Brasil
Exibição: todas as sextas-feiras, no Canal Brasil, com reprises nas segundas, às 2h15; terças, às 21h45; madrugadas de quarta para quinta, à meia-noite
Duração: 45 minutos
País: Brasil
Gênero: comédia