31 janeiro 2024

Destaque em premiações, “Anatomia de uma Queda” apresenta trama densa e arrebatadora

Ao suscitar reflexões complexas sobre a busca pela verdade, longa de Justine Triet vai muito além de um clássico drama de tribunal (Fotos: Diamond Films)


Carolina Cassese


Palma de Ouro em Cannes, duas estatuetas do Globo de Ouro e cinco indicações ao Oscar - inclusive o de Melhor Filme. "Anatomia de uma Queda" ("Anatomie d’une Chute"), o longa mais recente da francesa Justine Triet, definitivamente conquistou a aprovação da crítica e tem sido um dos destaques da atual temporada de premiações. Centrado na investigação de um crime, o drama, que já pode ser visto nos cinemas brasileiros, surpreende por reunir atuações ímpares e uma história arrebatadora.

Na primeira cena, vemos a autora Sandra Voyter (Sandra Hüller) falar sobre seu trabalho para Zoé (Camille Rutherford), uma estudante de pós-graduação. Enquanto isso, Samuel (Samuel Theis), o marido da escritora, está no andar de cima do chalé rústico, ouvindo música num volume ensurdecedor. Tal interferência é bastante reveladora: ele não está fisicamente na sala de estar, mas impõe sua presença ao atrapalhar a conversa das duas com o som. 


Pouco tempo depois, o marido é encontrado morto na neve, após ter aparentemente caído do sótão onde trabalhava. Porém, após investigações da polícia local, uma pergunta passará a ecoar por todo o longa: Sandra matou Samuel ou ele se jogou pela janela?

Não demoramos a ficar sabendo que o marido havia sido diagnosticado com depressão e vivia angustiado. O casal chegou a atravessar um significativo drama familiar: enquanto Samuel deveria estar vigiando o próprio filho, o menino Daniel (Milo Machado-Graner) sofreu um acidente e passou a ter complicações na visão. 


Considerando a importância do conceito de justiça para a narrativa, podemos, quem sabe, associar a limitação visual do garoto com a imagem desse princípio, que carrega uma venda nos olhos - simbolizando a imparcialidade. Mas é realmente possível (e até mesmo desejável) ser “neutro”? Ou, ao julgarmos uma situação, precisamos constantemente tomar decisões, que acabam nos comprometendo com determinado lado? 

Essas são apenas algumas das muitas perguntas que emergem a partir dos desdobramentos da trama, cujo título remonta ao clássico "Anatomia de um Crime" (1959), de Otto Preminger.

Ao longo do filme, vamos descobrindo outras informações que deixam a narrativa mais intrincada e repleta de nuances. Esse, aliás, é um dos principais méritos da produção de Triet: a história é realmente complexa e não pretende apresentar respostas prontas ou reviravoltas sem propósito. 


Muitos filmes de Hollywood nos viciaram em esperar por plot twists incessantes e extremamente reveladores; essa narrativa francesa, no entanto, nos obriga a fazer as pazes com várias camadas do indecifrável.

Nesse sentido, se os filmes "Vidas Passadas" e "Folhas de Outono" (produções que também têm se destacado na presente temporada de premiações deste ano) subvertem clichês da comédia romântica, podemos dizer que "Anatomia de uma Queda" também não se encaixa num mero estereótipo do gênero, já que o longa é muito mais do que uma típica disputa de tribunal. 

Por sinal, os franceses parecem ter uma habilidade especial para conduzirem narrativas intensas e complexas sobre julgamentos: o recente filme "A Acusação" (2022), de Yvan Attal, também apresenta cenas de tirar o fôlego e é bastante eficiente em capturar a atenção do espectador. Nos dois casos, os respectivos casos analisados servem como ponto de partida para a discussão de temas mais amplos.


Como já foi mencionado, "Anatomia de uma Queda" tem marcado presença nas premiações. No caso do Oscar, o filme foi indicado às categorias de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Atriz, Melhor Roteiro Original e Melhor Edição. É válido assinalar ainda que a produção levou um par de estatuetas do Gotham Awards (roteiro e longa-metragem internacional) e conquistou o prêmio internacional no New York Film Critics Circle Awards. 

Boa parte da crítica destacou o trabalho de Sandra Hüller e, vale dizer, a atriz de fato impressiona ao entregar uma personagem que consegue ser, ao mesmo tempo, impetuosa e significativamente indecifrável.

A duração do filme extrapola muito as duas horas, mas há boas chances de que o público sinta esse tempo passar num piscar de olhos. O tribunal chega a um veredito, mas o espectador não necessariamente irá se convencer de que tem todas as respostas. No entanto, tal sensação não faz com que o longa seja menos satisfatório - ao embarcarmos na intensa jornada de "Anatomia de uma Queda", logo entendemos que não saber faz parte do processo.


Ficha técnica
Direção e roteiro: Justine Triet
Produção: MK2 Films, Les Films Pelléas e France 2 Cinéma
Distribuição: Diamond Films Brasil
Exibição: nos cinemas
Duração: 2h30
Classificação: 16 anos
País: França
Gêneros: crime, suspense, policial, drama

30 janeiro 2024

Filme “Rustin” ganha holofotes graças a seu protagonista

O hipnótico ator Colman Domingo joga luz sobre a vida de ativista gay que lutou nos EUA pela igualdade
racial (Fotos: Netflix)


Eduardo Jr.


O nome de Martin Luther King é facilmente lembrado quando se fala da luta por direitos civis dos negros americanos. O de Bayard Rustin, não. E é “Rustin”, personagem-título do filme de George C. Wolfe ("A Voz Suprema do Blues" - 2020), que traz a história do militante ignorado pela história, mesmo sendo responsável por um dos maiores momentos da luta americana contra o racismo. 

O longa, que colocou o nome de Colman Domingo na lista de indicados ao Oscar de melhor ator, está no catálogo da Netflix. É uma cinebiografia do organizador da Marcha Sobre Washington, a passeata pacífica que contou com a presença de Luther King e seu famoso discurso “I have a dream”. O evento, ocorrido em 1963, reuniu 250 mil norte-americanos no Memorial Lincoln, lutando por igualdade. 


O longa foi produzido por dois nomes de peso, Barack e Michelle Obama. Apresenta um recorte da vida do ativista Bayard Rustin, mais precisamente o período da organização do evento, e intercala isso com dramas da vida pessoal do militante. Enquanto o movimento preparava cartazes pedindo trabalho e liberdade, Rustin, negro e gay, não vivia livremente sua sexualidade. 

Este talvez seja um dos pontos fracos do filme. Rustin não parece querer lutar pela liberdade para amar quem quiser. Sua vida amorosa aparece na tela como meros momentos, sem paixão. 

Apesar de enfrentar duas batalhas, uma racial e outra contra a homofobia (vinda até de seus aliados), é nos bastidores do movimento negro que o personagem de Colman Domingo exibe seu brilho.  


Atacado por inimigos e questionado até por seus companheiros, Rustin é magnético, e usa sua força interior e sabedoria para lidar com mentes preconceituosas e com armas de fogo. 

É empolgante ver como funcionou a estruturação da equipe, a convocação do público e a organização da sede de trabalho. E claro, conhecer uma figura que colocou nos livros de história uma página importante, mas nunca teve o devido reconhecimento. 


O Rustin criado por Colman Domingo é o maestro de um movimento e se movimenta com graça nesse papel. Enfrenta brilhantemente os personagens de Jeffrey Wright (um político de índole duvidosa) e Chris Rock (que está bem distante do humorista de sempre). 

O filme é acompanhado por uma trilha composta por um jazz que agrada muito, sem invadir as cenas. A fotografia também está lá, discreta. 

Se "Rustin" enquanto produto audiovisual não é perfeito e tem lá seus pontos questionáveis, a experiência de conhecer uma figura histórica, seus dramas e os bastidores de um movimento em um período de tamanha opressão é boa. 


Para Colman, mais difícil que organizar uma passeata pode ser vencer seus adversários na luta pela famosa estatueta dourada. Concorrem com ele na categoria “melhor ator” seu colega de elenco, Jeffrey Wright (por “American Fiction”, que ainda não tem estreia prevista no Brasil), Cillian Murphy ("Oppenheimer"), Paul Giamatti ("Os Rejeitados") e o afetado Bradley Cooper ("Maestro"). 

Mesmo longe de uma indicação para melhor filme, “Rustin” oferece durante uma hora e 48 minutos (que parece durar um pouco mais) conhecimento, e até faz o espectador se inflamar diante de uma causa. Dona Netflix entrega mais um filme que vale a pipoca.
     


Ficha Técnica:
Direção:
George C. Wolfe
Produção: Barack Obama e Michelle Obama
Exibição: Netflix
Duração: 1h48
Classificação: 14 anos
País: EUA
Gêneros: drama, biografia

28 janeiro 2024

"Príncipe Lu e a Lenda do Dragão": da "troslagem" à coragem

Luccas Neto entrega interpretação mais experiente em um conto de fadas com toques de comédia e musical (Fotos: Daniel Chiacos)

Silvana Monteiro


Uma verdadeira miscelânea para falar de amadurecimento, disputas, traição, romance e superação. Essa é a melhor definição para o novo filme de Luccas Neto, "Príncipe Lu e a Lenda do Dragão", que já chegou aos cinemas e contém magia, conto de fadas, luta medieval, comédia e aventura, tudo junto e misturado. 

Com uma lista de mais de 20 filmes produzidos pelas Luccas Toon, empresa de audiovisual fundada pelo influenciador, a aposta desta vez é na pegada medieval. 


Dirigido e roteirizado por Leandro Neri, o longa promete encantar toda a família com um elenco que conta com nomes como Giovana Alparone, a Gi, (como princesa Encantada); Maurício Mattar (Rei de Lucebra); Flávia Monteiro (como a Rainha); Renato Aragão (como o mestre espadachim); Zezé Mota (como a feiticeira do reino de Lucebra); Cássio Scapin (como Conde Drake) e Tadeu Mello (como guarda real), entre outros atores já conhecidos do grande público, principalmente das produções humorísticas da Globo. 


A trama se desenrola no Reino de Lucebra, onde o príncipe enfrenta o desafio de abandonar a "troslagem" e adquirir coragem para empunhar a espada alada, além da responsabilidade de assumir o trono. 

No entanto, uma profecia marcada para se cumprir quando ele completar 18 anos causa agitação. Uma tragédia envolvendo o Rei, muda a rotina de todos, exigindo que soberanos e súditos se unam para salvar o reino.

Ao longo da história, o Príncipe Lu encontra personagens que o ajudam em sua missão. No entanto, o filme peca na inserção de eventos, tornando a narrativa um tanto misturada. Por sua vez, as performances musicais adicionam um toque especial ao filme, que tem duração de 1 hora e 40 minutos.


As atuações, especialmente as dos veteranos Flávia Monteiro, Zezé Mota e Cássio Scapin, contribuem para o caráter vanguardista do elenco, agregando valor à produção. Suas performances marcantes elevam a qualidade das cenas em que estão presentes. 

Apesar da participação especial de Renato Aragão ser breve, a atuação é marcante e as poucas cenas entre ele e Neto têm um timing ideal da comédia. 


Destaque para as cenas e os figurinos de Zezé Mota. Uma grande e incrível sacada do filme. Entre os novatos, destaca-se Anaju Dorigon como Rita (a princesa Irritante), cujas cenas garantem momentos bem divertidos.

O roteiro, assinado por Leandro Neri, Paulo Halm e Luccas Neto, segue uma fórmula previsível de herói relutante que amadurece ao longo da jornada. As lições de vida e ensinamentos presentes na narrativa são bem-intencionados, mas poderiam ser entregues de maneira mais sutil. 


Os aspectos técnicos, como os efeitos especiais e a direção de arte, não conseguem criar uma atmosfera medieval convincente. O contraste entre os figurinos e a ambientação dos cenários externos, claramente tropicais, prejudica a credibilidade da “aura medieval”. 

Destacam-se positivamente a caracterização do Rei Drago, seus guerreiros e a guerreira mascarada, que estão bem elaborados.

A classificação indicativa livre seria melhor aproveitada com uma abordagem mais sofisticada que pudesse atrair também os adultos que acompanham as crianças. 

Apesar disso, "Príncipe Lu e a Lenda do Dragão" se conecta ao público-alvo e cumpre o objetivo de entreter a meninada que segue suas aventuras. Luccas Neto amadureceu como ator e entrega uma atuação marcante.


Ficha técnica
Direção: Leandro Neri
Roteiro: Paulo Halm, Luccas Neto e Leandro Neri
Produção: Luccas Toon e Take4Content
Distribuição: H2O Films
Exibição: nos cinemas
Duração: 1h40
Classificação: Livre
País: Brasil
Gêneros: fantasia, família, aventura

27 janeiro 2024

"Turma da Mônica Jovem: Reflexos do Medo" - uma viagem nostálgica e atualizada aos quadrinhos

Longa é baseado nas histórias de Maurício de Sousa com os personagens agora adolescentes
(Fotos: Laura Campanella)


Filipe Matheus
@comentandosucessos


Quem nunca se apaixonou pela turminha do Limoeiro, não é mesmo? Desde 1970, a Turma da Mônica saiu das páginas dos jornais, virou histórias em quadrinhos, e anos depois conquistou o cinema. A galera, agora adolescente, pode ser conferida no longa "Turma da Mônica Jovem: Reflexos do Medo", em cartaz nos cinemas.

Com um elenco jovem e bem afinado, o filme vem para resgatar momentos nostálgicos que crianças e adultos vivenciaram ao lerem as HQs anos atrás produzidas por Maurício de Souza. 

O elenco é o ponto forte do filme, com destaque para Sophia Valverde, que interpreta de forma encantadora a personagem Mônica, formando um lindo par romântico com Xande Valois, o Cebola. 


Bianca Paiva (Magali), Théo Salomão (Cascão), Carol Roberto (Milena), Giovanna Chaves (Carmem), Mateus Solano (o excêntrico Licurgo, versão do Louco, da Turma da Mônica), Carol Amaral (Denise), Bruno Vinícius (Jerê), Lucas Pretti (Titi), Giovanna Chaves (Carmem), Yuma Ono (DC) e Eliana Fonseca (Tia Nena), Maria Bopp (Ana Paula), Rodrigo Fernandes (Falconi), Júlia Rabello (Dona Isabelle) e Ataíde Arcoverde (Lindolfo) compõem o restante do ótimo elenco. 

Eles trazem emoção e versatilidade à história, agora que a turma deixou a infância e entrou na juventude.


No primeiro dia de aula, Mônica, Cebola, Cascão, Magali e Milena não demoram a perceber que coisas estranhas estão acontecendo no colégio. Ao descobrirem que o museu do Limoeiro será leiloado, eles decidem se unir em uma missão para tentar salvá-lo de uma força misteriosa. Esta abordagem de mistério e suspense tem agradado alguns fãs.

Apesar de tocar o espectador, senti a falta de alguns personagens da turma no filme, como Franjinha, Xaveco, Dorinha e Luca. Mesmo sendo difícil um longa incluir todos os personagens de uma obra, seria importante adicionar pelo menos aqueles que representam algum diferencial. Como Dorinha, a jovem com deficiência que nos quadrinhos tem presença importante no enredo. Dessa forma, o filme seria mais marcante e atual.


O longa, assim como outros da Turma da Mônica, é baseado nas histórias de Maurício de Sousa, cuja grande fonte de inspiração sempre foi a própria família. Casado três vezes e pai de nove filhos, criou pelo menos sete personagens com semelhanças dos filhos e amigos próximos, especialmente Mônica e Magali.

Em 2008, houve a releitura dos personagens adolescentes, como no filme, com traços e linguagem que remetem aos mangás japoneses. As histórias atuais são voltadas para o público adolescente, mostrando que é possível dialogar com a galera, independentemente da idade. 

O filme marca uma nova fase na vida dos amigos do bairro Limoeiro que estão juntos desde a infância e agora compartilham seus medos e inseguranças.


Existem vários aspectos positivos neste longa infantojuvenil. O mais evidente é o poder da amizade, capaz de proporcionar vivências e aventuras que enriquecem a experiência de vida. Assim como nas HQs, a vida real é repleta de mistérios, e desvendá-los vivendo intensamente é algo essencial.

Venha fazer parte dessa jornada emocionante! Garanta seu ingresso, sinta a nostalgia e vibre com a magia de "Turma da Mônica Jovem: Reflexos do Medo". Seu convite para a diversão está feito. Nos vemos no cinema! E não saiam da sala antes da cena pós-crédito.


Ficha técnica:
Direção: Maurício Eça
Roteiro original: Sabrina Garcia, Rodrigo Goulart e Regina Negrini
Produção: Bronze Filmes e coprodução da Maurício de Souza Produções e Rubi Produtora (associada)
Distribuição: Imagem Filmes
Exibição: nos cinemas
Duração: 1h28
Classificação: 10 anos
País: Brasil
Gêneros: fantasia, aventura, família

25 janeiro 2024

“Vidas Passadas” reflete com sensibilidade sobre a passagem do tempo

História de amor, indicada ao Oscar 2024 de Melhor Filme e Melhor Roteiro Original, consegue escapar
dos clichês do gênero (Fotos: A24)


Carol Cassese


“Quando você abandona uma coisa, acaba ganhando outra”. Uma das primeiras frases de "Vidas Passadas" ("Past Lives"), filme de Celine Song, ecoa durante toda a narrativa, que reflete sobre as chances perdidas e as boas surpresas do cotidiano. 

O longa, que foi indicado ao Oscar 2024 de Melhor Filme e Melhor Roteiro Original, estreou com aclamação no Festival de Sundance e recebeu o troféu de Melhor Filme Independente no Gotham Awards.

Em cartaz nos cinemas a partir desta quinta-feira (25), essa nova produção da A24 acompanha a relação de Nora (Greta Lee) e Hae Sung (Teo Yoo), amigos de infância que seguem caminhos separados quando a família da protagonista se muda da Coreia do Sul para o Canadá. 


Os dois personagens se reencontram em dois momentos: primeiramente, 12 anos após a partida de Nora, quando passam a conversar online por um breve período.

Mais uma década se passa e Hae Sung decide que irá visitar Nova York, cidade em que Nora passou a morar. No entanto, agora a protagonista definitivamente não é mais aquela garotinha ingênua da Coreia do Sul: Nora vive com seu marido estadunidense, Arthur (John Magaro), e se encontra bem mais adaptada à realidade norte-americana.


A diretora medita sobre a noção de “In-Yun” ao longo de toda a história; segundo o conceito coreano, o nosso “eu atual” (e as pessoas ao nosso redor) estão diretamente relacionadas a acontecimentos de vidas passadas. Em diferentes momentos, os personagens da trama de Song refletem filosoficamente sobre como estão profundamente conectados.

Além de acompanhar o desenrolar do relacionamento entre Nora e Hae Sung, o longa também tangencia o tema do “sujeito dividido”, bastante comum em narrativas de imigração. Numa determinada cena, o marido de Greta observa que a esposa fala em coreano enquanto está dormindo: “Você sonha em uma língua que eu não entendo; é como se tivesse um lugar dentro de você que eu não posso acessar”. 


Por sua vez, a protagonista frequentemente se sente desconectada das origens sul-coreanas - inclusive ao comparar sua vida com a de Hae Sung, que, segundo ela, é um “típico coreano”.

Um dos principais méritos do longa é o fato de o mesmo não apresentar um desenrolar óbvio, como acontece em muitas comédias românticas. Nesse sentido, podemos até mesmo relacionar o filme com "Folhas de Outono" (2023), que também é centrado numa história de amor e consegue escapar dos clichês do gênero.


Em entrevista ao veículo The Hollywood Reporter, a diretora Celine Song fez um pedido aos espectadores: “Espero que o público compareça ao cinema com o coração aberto, mais do que qualquer outra coisa. (..) Espero que pelo menos na hora e 45 minutos em que estiverem no teatro, eles consigam se conectar com os protagonistas e estar abertos a eles”. Levando em conta a excelente construção de personagem, não é uma tarefa difícil se envolver com os acontecimentos.

Ao reunir belos enquadramentos e ótimas atuações, "Vidas Passadas" merece destaque nessa temporada de premiações. É ainda mais impressionante, vale assinalar, o fato de que esse é o primeiro filme de Song - definitivamente podemos ficar ansiosos pelo que vem pela frente.


Ficha técnica:
Direção e roteiro: Celine Song
Produção: A24
Distribuição: California Filmes
Exibição: nos cinemas
Duração: 1h45
Classificação: 12 anos
Países: Coreia do Sul e EUA
Gêneros: comédia romântica, drama

23 janeiro 2024

Animação “Bizarros Peixes das Fossas Abissais” entrega a estranheza que o título sugere

Estreia do animador Marão na direção de um longa tem vozes de Guilherme Briggs, Rodrigo Santoro e Natália Lage (Fotos: Pedro Gallo) 


Eduardo Jr.


O título é bem exótico. E o que se vê na tela é igualmente estranho. Mas a mensagem chega ao destinatário e até diverte o público durante esse trajeto. O filme “Bizarros Peixes das Fossas Abissais” marca o primeiro passo do diretor e animador Marão no mundo dos longas-metragens, e chega aos cinemas no dia 25 de janeiro. A distribuição é da Vitrine Petrobras, em parceria com a Boulevard Filmes. 


O título se refere ao destino das personagens, as profundezas do mar, onde esperam encontrar um segredo oculto por um mapa. Nessa jornada, que vai da baixada fluminense até a Sérvia, três personagens se unem: uma mulher que transforma seus glúteos em um primata bom de briga ao pronunciar a frase “minha bunda é um gorila” (oi?), uma tartaruga com transtorno obsessivo-compulsivo (que é ótima!) e uma nuvem com incontinência urinária - ou melhor, pluviométrica (eu juro, é isso mesmo que você leu). 


Toda essa esquisitice chega ao espectador vestida em traços rústicos como rascunhos, em piadas nonsense e ironias sobre o universo dos heróis. Na dublagem, nomes de destaque como Natália Lage, Guilherme Briggs e Rodrigo Santoro. E o que parece ser limitação é, na verdade, uma escolha. Marão, que roteirizou o longa, decidiu trabalhar com apenas dois nomes, já velhos conhecidos do diretor: Rosaria e Fernando Miller. 

Talvez por isso tenha levado dez anos para concluir a obra. Foram quatro anos para captar recursos e outros seis para desenhar e animar tudo. A história foi ganhando vida em ordem cronológica, em formato 2D, utilizando a técnica full animation, na qual os personagens se movem por inteiro, e não algumas partes. 


A animação dialoga com jovens adultos, e nela há pautas como amizade, a força do coletivo, a coragem para enfrentar seus medos, valores de vida e resiliência. Abordagens presentes também em outras obras, como “Chef Jack” (2023), um dos representantes deste momento de ascensão da animação brasileira.    

Mesmo que a proposta seja duvidosa, as credenciais do longa vão se acumulando. Marão e seu “Bizarros Peixes das Fossas Abissais” receberam Menção Honrosa na Première Brasil - Novos Rumos no Festival do Rio; prêmio de Melhor Longa pelo júri popular do Monstra Festival, em Lisboa; prêmio de Melhor Longa de Animação do City Film Festival Stockholm, na Suécia; além de integrar a programação da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e do Festival Internacional Del Nuevo Cine Latinoamericano de Havana. 

Diretor e animador Marão

Mostras de cinema não são uma novidade para Marão, que tem passagem por 667 festivais e 127 prêmios. Entre seus 15 filmes, há, sim, curtas mais interessantes do que “Bizarros Peixes”. Mas a experiência de conhecer o trabalho do diretor e animador pode ser interessante. 

As cidades com exibição confirmada do longa são Aracaju, Belém, Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, Goiânia, João Pessoa, Maceió, Manaus, Niterói, Palmas, Porto Alegre, Recife, Rio Branco, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Vitória. 


Ficha Técnica:
Direção e roteiro: Marão
Animação: Marão, Rosaria e Fernando Miller
Produção: Letícia Friederich
Distribuição: Vitrine Filmes e Boulevard Filmes
Exibição: nos cinemas
Duração: 1h15
Classificação: Livre
País: Brasil
Gêneros: comédia, animação

19 janeiro 2024

"Sobreviventes - Depois do Terremoto" explora ética e moral da sobrevivência e da coexistência

A escolha de tons mais escuros e sombrios ajuda a transmitir a sensação de desespero dos personagens diante da devastação de Seul (Fotos: Lotte Entertainment)


Silvana Monteiro
@silmontheiro


"Sobreviventes - Depois do Terremoto" ("Concrete Utopia"), dirigido por Tae-hwa Eom, que assina o roteiro com Lee Shin-ji, traz análise e crítica socioambiental, escancarando as várias faces da natureza humana, principalmente frente aos desafios e à escassez de recursos e de habitação. 

O filme, que entrou em cartaz nos cinemas, começa com cenas inofensivas que demonstram a verticalização e a grande quantidade de pessoas em busca de uma chance para adquirir um apartamento em Seul, capital da Coreia do Sul.


Um cataclismo de proporções avassaladoras se desencadeia, deixando para trás uma paisagem desolada. O caos se instala e a esperança parece um fio tênue prestes a se romper. Em meio à devastação, apenas um imponente arranha-céu, o Hwang Gung Apartments, emerge como um farol solitário de resistência.

No inverno implacável, o prédio se torna uma colmeia humana, abrigando uma miríade de histórias, dores e esperanças. No entanto, a harmonia é rapidamente ameaçada à medida que a capacidade do edifício é ultrapassada.


Incomodados com aqueles "sobreviventes invasores", os "sobreviventes proprietários", tomam uma medida extraordinária para preservar a ordem. Mas como estabelecer tais regras em um lugar onde a própria vida é uma exceção, frágil e incerta? 

Na imensidão do caos, alguém é dono de algo? Quem tem domínio sobre a própria vida? O dilema moral surge, desafiando a noção de justiça em meio à adversidade.

Entre paredes marcadas pela tragédia, segredos são revelados, alianças são formadas e o destino de todos fica suspenso no fio da balança. Nesse turbilhão de emoções e dilemas morais, uma única certeza prevalece: coexistir em meio ao caos é enlouquecedor. Ser e ter se confundem.


Fotografia e cinematografia

As cenas fazem com que o espectador mergulhe profundamente na experiência dos sobreviventes. A fotografia com uma paleta de cores contrastantes, alternando entre tons claros antes do terremoto e tons mais sombrios, fortes e marcados após a catástrofe, reforça o realismo distópico da obra.

Essa escolha estética intensifica o impacto emocional de "Sobreviventes - Depois do Terremoto", transmitindo a sensação de desespero e desolação dos personagens. Os movimentos demonstram as tensões em busca de sobrevivência e convivência, o que proporciona uma experiência cinematográfica emocionalmente carregada.


Enredo e atuações

O diretor entrelaça diferentes histórias pessoais, algumas vezes com um certo desequilíbrio, o que pode causar confusão no fio condutor. Isso exige do espectador fixação total na tela. 

Os destaques da atuação vão para os atores Park Seo-joon ("Parasita" - 2020) como Min Sung, e Park Bo-young (Myung Hwa) que vivem os recém-casados da trama. Os dois dão o toque Dorama ao longa e nos remetem ao lado solidário da humanidade. Ambos permeiam a luta para salvar os sonhos e aspirações de um casal com cenas intimistas e propósitos de resiliência.


Lee Byung-hun, que já atuou em vários filmes e séries de televisão, incluindo "Sete Homens e Um Destino" (2016) , "O Bom, o Mau e o Bizarro" (2008), "Mr. Sunshine" (2018) e "Round-6" (2021), também se destaca. Ele dá o toque visceral e personifica a insurgência, nem vilão e nem mocinho, agindo como uma espécie de síndico, disposto a tudo para salvar seu teto e sua pele.

"Sobreviventes - Depois do Terremoto" peca na duração e no excesso de incidentes fragmentados no caos. Na visão desta cronista, a trama poderia ser mais coesa para prender melhor o público, porém ainda é um prato cheio para quem gosta de ficção científica e distopia, de reflexão e de debate sobre os caminhos e destinos da humanidade.


Ficha técnica
Direção:
Tae-hwa Eom
Produção: Climax Studio e BH Entertainment Co.
Distribuição: Paris Filmes
Exibição: nos cinemas
Duração: 2h09
Classificação: 16 anos
País: Coreia do Sul
Gêneros: drama, ficção científica, suspense

18 janeiro 2024

Julianne Moore e Natalie Portman roubam a cena até mesmo em uma sátira como "Segredos de um Escândalo"

Filme é baseado em um caso real de pedofilia dos anos de 1990 que ganhou as páginas de jornais sensacionalistas pelo mundo (Fotos: May December Productions)


Wallace Graciano


Quando você tem em um filme um elenco com Julianne Moore e Natalie Portman, logo a expectativa de uma obra carregada de emoções fica no alto, certo? Impossível ser diferente, afinal estamos falando de duas das atrizes que faltam predicados para qualificá-las. 

Imagine, então, para dar vida a um filme baseado em fato real, no qual, normalmente, sentimentos e trejeitos são explorados de forma exaustiva? 

Porém, se podemos lhe dar um conselho é que dispa-se dela quando for assistir "Segredos de um Escândalo" ("May December"). Não que a atuação das duas não seja fantástica, como outrora. É. A questão está na premissa da obra em si, que carrega uma sátira a todo o mercado.


Todd Haynes, de "Carol" (2016), deixou para trás os embates morais de uma relação que ia de contraponto ao status quo de uma sociedade para, agora, atacar de forma melodramática tudo que está envolto no sensacionalismo da vida real.

Na trama, ele nos traz Gracie Atherton-Yoo, que é vivida por Moore. Uma mãe dedicada aos filhos, que é casada com Joe (Charles Melton). Seriam mais uma família estadunidense estereotipada não fosse o fato dela, quando tinha 36 anos e três filhos, ter se envolvido sexualmente com ele, que, aos 13 anos, era amigo de escola do seu filho. 

Da relação nasceu um casal de gêmeos e fez com que a outrora dedicada mãe fosse parar atrás das grades.


Após se acertar com a Justiça, Gracie volta a se relacionar com Joe e eles tentam seguir uma vida comum, como se o passado fosse apenas uma mera pedrinha que ultrapassaram. 

E assim seria, com os filhos prestes a entrar na universidade, não fosse o fato de Elizabeth (Portman), uma renomada atriz vencedora de séries, ser convidada para dar vida à Gracie em um filme. Pura metalinguagem.

Enquanto “investiga” trejeitos de sua futura personagem, Elizabeth passa do papel de detetive ao de psicóloga, colocando na sala do casal vários elefantes que estavam obscuros. E eles são muitos, com a relação abusiva do passado, que ficou por baixo do tapete, sendo mantida no presente, onde Gracie trata o marido como uma de suas proles, quase que de forma infantil. 


Nesse contexto, Haynes é brilhante ao conseguir expor o absurdo do caso. E ele conta com atuações impactantes de Portman e Moore para chegar a isso, já que elas misturam seus atos a um constante desconexo de frases e falta de linearidade da fotografia. O confuso é proposital e traz uma provocação ao sensacionalismo. 

Se podemos resumir a você, caro leitor, é que você precisa ir ao cinema com a certeza de que a obra não será eternizada como uma das mais brilhantes que assistimos, mas que valerá todo seu esforço. Seja por sair provocado pela construção propositalmente confusa de Haynes, seja por saber que Moore e Portman são duas das mais brilhantes atrizes de nossa geração.


Em qual caso "Segredos de um Escândalo" é inspirado?

A obra vivida por Portman e Moore não traz os nomes reais dos personagens que a inspirou. Na verdade, Gracie tem paralelos com Mary Kay Letourneau, enquanto Joe é um personagem que tenta reproduzir a vida de Vili Fualaau.

Os dois protagonizaram um dos maiores escândalos sensacionalistas estadunidenses dos anos 1990. Mary Kay e Vii se conheceram em 1991, quando ele tinha apenas oito anos e estudava na mesma escola em que Mary era sua professora numa cidade ao sul de Seattle. 

Ao conhecer mais profundamente aquele garoto, ela buscou estimulá-lo, já que ele vinha de uma família desestruturada, com 17 irmãos. Porém, cinco anos mais tarde, o que era cumplicidade ganhou outros rumos. 

Fualaau apostou com uma prima que conseguiria conquistar a professora e passou a “cantá-la” em um acampamento de verão. Mary, com 35 anos, consentiu e a relação mudou de status, virando um romance. 

O casal Mary Kay e Vii (Reprodução/Youtube)

Eles viveram em segredo até que em meados de 1996 um policial descobriu o casal. Ele patrulhava uma rua e verificou um carro suspeito, descobrindo a relação. Eles tentaram negar o caso, mas Steve, o marido de Mary, encontrou os bilhetes românticos, denunciando a então esposa à polícia.

Mary foi presa, acusada de estupro de vulnerável. Ela chegou a fazer um acordo com a promotoria e ficou somente seis meses presa, quando avisou que estava grávida. Ela cumpriu só metade da pena, com a condição de não ver mais Vii. Porém, ao sair, se reaproximou do rapaz, o que fez com que pegasse sete anos de prisão, após anunciar nova gravidez.

Quando Mary foi solta, os dois se casaram, já que Fualaau era maior, vivendo 12 anos juntos e se separando em 2017, a pedido de Vili. No ano seguinte, Mary foi diagnosticada com câncer de cólon, e dois anos depois, em 2020, faleceu aos 58 anos.


Ficha técnica:
Direção: Todd Haynes
Produção: Killer Films, May December e Netflix Productions
Distribuição: Diamond Films Brasil
Exibição: nos cinemas
Duração: 1h57
Classificação: 16 anos
País: EUA
Gêneros: drama, comédia

17 janeiro 2024

"Mergulho Noturno" - um terror que decepciona

A história gira em torno dos quatro integrantes de uma família e os ataques vindos de uma entidade que habita a piscina da casa deles (Fotos: Universal Pictures)


Maristela Bretas


Uma boa proposta que afunda na própria piscina e decepciona. Este é "Mergulho Noturno" ("Night Swim"), que estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (18). O filme entrega poucas cenas de terror, tem um monstro tosco que só assusta na primeira aparição (o único berro de susto ouvido por todos na sessão de pré-estreia foi de uma amiga) e mais nada. 

Produzido pela Blumhouse, a mesma responsável por títulos do gênero como "A Freira" (2018), "M3gan" (2022) e “Five Nights at Freddy's - Pesadelo sem Fim" (2023), o longa, dirigido por Bryce McGuire é inspirado no curta-metragem homônimo de 2014. Difícil acreditar que uma produção de terror que tem como produtores James Wan e Jason Blum poderia se tornar o desperdício de um tema que tinha tudo para agradar quem gosta deste tipo de filme. 


"Mergulho Noturno" conta a história de Ray Waller (Wyatt Russell, de "Operação Overlord" - 2018) um ex-jogador de beisebol que foi forçado a se aposentar precocemente em função de uma doença degenerativa. Ele se muda com a esposa Eve (Kerry Condon, de "Os Banshees de Inisherin" - 2022), o filho Elliot (Gavin Warren) e a filha adolescente Izzy (Amélie Hoeferle, de "Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes" - 2023) para uma casa nova. Só não contavam com as forças sobrenaturais que habitavam justamente o local favorito das crianças: a piscina. 


O início do filme é até promissor. O diretor Bryce McGuire cria uma atmosfera de suspense e tensão, com imagens sombrias e uma trilha sonora inquietante. O público é rapidamente envolvido pela história e começa a se perguntar o que está acontecendo com a família.

Mas antes da metade do filme, o suspense já deixa de existir e as cenas de terror, já fracas, se tornam cada vez mais escassas, mesmo o diretor tendo afirmado em recente entrevista que o filme faria o público "perder o fôlego e roer as unhas nos cinemas".


Os jump scares, usados de forma excessiva, são previsíveis, não causam nenhum impacto e acabam perdendo a eficácia. O filme também peca por ser muito previsível, com uma reviravolta que é facilmente adivinhada. 

Apesar de ser um gênero que deveria causar susto e medo, o longa se concentra mais nas reações dos Waller ao que está acontecendo. E é a ótima atuação do elenco, especialmente da família, o ponto positivo de destaque. 

A piscina vilã, centro das atenções do filme, é pouco explorada e acaba ficando em segundo plano. A reviravolta é facilmente adivinhada, o filme dá pistas demais e tira o impacto. "Mergulho Noturno" pode até divertir os fãs do terror, mas é improvável que surpreenda ou assuste.


Ficha técnica
Direção e roteiro: Bryce McGuire
Produção: Atomic Monster e Blumhouse Productions
Distribuição: Universal Pictures
Exibição: nos cinemas
Duração: 1h39
Classificação: 14 anos
País: EUA
Gêneros: terror, suspense