Mostrando postagens com marcador #documentário. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador #documentário. Mostrar todas as postagens

12 setembro 2025

"Seu Cavalcanti" e a devoção que transcende o tempo

Diretor Leonardo Lacca coletou imagens em movimento do avô por mais de duas décadas, que foram transformadas num documentário/ficção (Fotos: Divulgação)


Patrícia Cassese


No início dos anos 2000, à época no vigor dos seus 20 e poucos anos, o recifense Leonardo Lacca teve um impulso: coletar imagens em movimento do avô, Seu Cavalcanti. 

Ali, naquele momento específico, o hoje diretor, roteirista, editor, preparador de elenco e produtor cinematográfico não tinha uma ideia precisa do que iria fazer com o material. 

Fato é que, no curso dos anos seguintes, Lacca continuou imbuído da missão, que, mais recentemente, acabou desaguando na ideia de usar parte do material para estruturar um filme. 


Junto ao insight, uma série de indagações emergiram, principalmente quanto ao formato ideal para levar à telona fragmentos da vida desse personagem até então conhecido apenas por um círculo limitado de pessoas, composto por colegas, amigos, familiares ou vizinhos. 

Certo, também por uns tantos que eventualmente topavam com aquele carismático senhor, ao qual muitos se referiam como "uma figura". Caso, por exemplo, dos mesários da seção na qual o pernambucano votava, alinhado a seus princípios democráticos.


Pitadas ficcionais

"Seu Cavalcanti", o resultado, leva à telona uma mescla de documentário - narrado pelo próprio Leonardo - com pitadas ficcionais, que incluem, por exemplo, a presença da atriz Maeve Jinkins. O filme, vale dizer, foi exibido na Mostra de Cinema de Tiradentes em 2024, quando a iniciativa participou da sessão competitiva Olhos Livres. 

A "docuficção" está em cartaz em várias cidades do Brasil e aqui em Bh, no Cine Una Belas Artes, ostentando credenciais como o fato de ter acoplado, no meio do caminho, na produção, os nomes de Emilie Lesclaux e Kleber Mendonça Filho, da Cinemascópio Produções, e Mannu Costa, da Plano 9.


O início do longa flagra Seu Cavalcanti já com 95 anos, morando na mesma casa que o neto, Leonardo, bem como as duas filhas - sendo uma delas, Tereza, a mãe do cineasta. 

No curso da narrativa, o espectador fica sabendo que Seu Cavalcanti é meio que um pai para Leonardo Lacca, que, como salientado, só passou a se relacionar com o seu genitor biológico na adolescência.

Aliás, ao nascer, Seu Cavalcanti quis inclusive registrar o neto como filho, para que, assim, o garoto tivesse a figura paterna constando em seus documentos. A mãe acabou não aceitando, mas, para a Igreja Católica, Seu Cavalcanti ficou sendo oficialmente o pai de Lacca.


Imagens orgânicas

No filme, Seu Cavalcanti tem imagens de seu cotidiano captadas de forma muito orgânica, sem rebuscamentos, com muito naturalismo. 

Assim, vemos o policial civil aposentado - mas com a carteira em dia, como se orgulha - em atividades prosaicas, seja tomando banho, fazendo a barba, tendo os pelos do nariz aparados, dormindo com o ventilador ligado ou afagando a cadela Nina. 

Aspectos engraçados da sua vida também polvilham a história, como o fato de "dirigir muito mal" (nas palavras do neto/diretor) ou de, singelo e puro que era, aceitar todas as propostas de empréstimos apresentadas pelos funcionários da instituição bancária na qual mantinha conta.

O apego ao carro velho - que, em dado momento, é inclusive roubado - também surge na telona, assim como um namoro furtivo - no caso, encenado com a já citada Maeve Jinkings. 


A formatura da neta é outro momento explorado pela câmera afetiva de Lacca, que, cumpre assinalar, prossegue ativa mesmo após a partida de Seu Cavalcanti, em 2016. 

O que conta é o afeto

A ausência física é, pois, substituída pela presença da memória daquele homem de orelhas grandes e apreço confesso ao whisky, e que se orgulhava de, nas eleições presidenciais de 2014, ter votado na candidata da esquerda. 

Nos momentos finais, uma surpresa relativa a seu passado vem à tona, em cenas que também abrem espaço para um divertido perrengue.


Mas é o elemento afeto que alinhava a iniciativa, tornando esse recorte que irrompe de um núcleo familiar específico passível de enternecer aqueles espectadores que, em suas respectivas trajetórias, porventura tenham vivenciado experiências similares. 

Ou seja, de uma convivência enriquecedora, sob um mesmo telhado, de representantes de gerações distintas que, não obstante as diferenças particulares inerentes a todos os componentes de cada família, partilharam ensinamentos, carinho, respeito, cuidado e, principalmente, amor. 

E são esses elementos que certamente farão com que um filme sobre a vida de um homem comum, lá do Recife, tenha o potencial para aquecer o coração de quem for assistir "Seu Cavalcanti" nos cinemas.


Ficha técnica:
Direção e Roteiro:
Leonardo Lacca
Produção: Cinemascópio Produções, Trincheira Filmes, Plano 9
Distribuição: Cajuína Audiovisual
Exibição: Cine Una Belas Artes
Duração: 1h18
Classificação: 12 anos
País: Brasil
Gêneros: documentário, ficção

03 setembro 2025

“3 Obás de Xangô” é a consolidação da Bahia que conhecemos pelas mãos de três artistas

Esclarecedor e divertido, documentário do diretor Sérgio Machado aborda a amizade entre o escritor Jorge Amado, o compositor Dorival Caymmi e o artista plástico Carybé (Fotos: Primeiro Plano)


Eduardo Jr.


A imagem que se tem da Bahia como uma terra ligada à arte, religiosidade, simplicidade e resiliência passa pelos nomes que centralizam a narrativa do documentário “3 Obás de Xangô”, em cartaz nos cinemas.

A obra do diretor Sérgio Machado aborda a amizade entre o artista plástico Carybé (1911-1997), o cantor e compositor Dorival Caymmi (1914-2008) e o escritor Jorge Amado (1912-2001). Um elo que se fortifica pela representatividade deles para o candomblé e pela colaboração na construção de uma identidade baiana. 

Não é a primeira vez que Sérgio retrata a Bahia. A terra natal do diretor foi cenário do longa “Cidade Baixa” (2005), que apresenta uma amizade que vai se esfacelando e elementos que perpassam Salvador e as obras de Amado, Carybé e Caymmi, como a pobreza, a prostituição e o mar. 

Agora, o diretor se volta para a força do laço fraterno, a religiosidade, e coloca os temas citados como subtítulos da arte produzida pelos três.  


Tamanha identificação com a história da Bahia resultou no título de Obás de Xangô que os três receberam. Mãe Aninha, mandatária do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, criou o título nos anos 1930. O objetivo era que os Obás atuassem como mediadores entre o terreiro de candomblé e a sociedade. 

Chama atenção a frase na abertura do filme: “Liturgia significa o poder do povo enquanto consenso, política significa o poder do povo enquanto diferenças”. 

Em uma época em que a intolerância religiosa taxava como crime as manifestações de matriz africana, a escolha de Mãe Aninha por expoentes da cultura foi estratégica.


A expressividade de Amado, Carybé e Dorival pode ser entendida logo no início do documentário, em uma carta narrada por Lázaro Ramos, onde diz que os três “engravidaram do povo e pariram a Bahia na popa de um saveiro, numa barraca de folhas, num ritual no mercado, no peji de Iemanjá no Rio Vermelho. Foram a face, a voz, o pranto e o riso do povo da Bahia”. Parece não haver definição melhor.

A produção do documentário começou em 2018, baseada em cenas de arquivo e em material não aproveitado de um média-metragem dos anos 1990, filmado por Walter Carvalho. 

Há também entrevistas realizadas com o jornalista Muniz Sodré, o escritor Itamar Vieira Júnior, o cantor Gilberto Gil, e Zélia Gattai, esposa de Jorge Amado. 


Completam a obra cenas de filmes de Bruno Barreto, Nelson Pereira dos Santos e fotos de Pierre Verger, que mesmo estáticas, exalam vida. Não por acaso, "3 Obás de Xangô" conquistou o prêmio de 'Melhor Documentário do Ano' no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. 

Venceu também o Grande Otelo de 'Melhor Longa-Metragem', foi eleito 'Melhor Filme' pelo Júri Popular, na Mostra de Cinema de Tiradentes, além de ganhar o Redentor de 'Melhor Documentário' no Festival do Rio. Além do Prêmio do Público de 'Melhor Documentário Brasileiro' na Mostra de São Paulo. 


Força da mulher

Outro mérito do filme é que as presenças de Amado, Carybé e Dorival deixam de ser o único atrativo quando surgem na tela as raras imagens de Joãozinho da Goméia, Camafeu de Oxossi, Mãe Stella de Oxóssi e Mãe Menininha do Gantois. 

Inclusive, exaltar a força da mulher é uma das aspirações do longa. Para além do canto de Caymmi e do protagonismo feminino nas telas e páginas criadas por Carybé e Jorge Amado, o longa é firme ao expor que as mulheres é que comandavam terreiros e cuidavam de orixás, e não os homens. 

“Uma aceitação do poder feminino que talvez seja maior na Bahia do que em qualquer outro lugar”, é o que se ouve em uma das entrevistas. “3 Obás de Xangô” é uma aula que acaba nos lembrando uma canção de Caymmi, que assume ares de conselho de amigo: “você já foi à Bahia? Não? Então VÁ!” 


Ficha Técnica
Direção: Sérgio Machado
Roteiro: Sérgio Machado, Gabriel Meyohas, Josélia Aguiar, André Finotti
Produção: Coqueirão Pictures, com coprodução da Janela do Mundo, Globo Filmes e GloboNews
Distribuição: Gullane+
Duração: 1h15
Classificação: 12 anos
País: Brasil
Gênero: documentário

27 agosto 2025

Documentário retrata a cadência (no samba e na vida) de Moacyr Luz

Obra dirigida por Tarsilla Alves é recheada de causos e passagens da vida do admirado e respeitado
sambista carioca (Fotos: Bretz Filmes)


Eduardo Jr.


O documentário “Moacyr Luz, O Embaixador Dessa Cidade” é uma oportunidade de conhecer e homenagear um dos mais carismáticos sambistas cariocas. E eu posso provar: em certo momento o biografado diz: “ouvi uma vez que a cada torresmo que a gente come a gente perde 15 minutos de vida; então, pelas minhas contas, eu devo ter morrido em 2014”. Como não gostar de uma figura dessas?

É na pegada dos causos e passagens que Tarsilla Alves faz sua estreia na direção, apontando a câmera para o cotidiano de Moacyr Luz e deixando que ele nos apresente seu mundo em sete dias. A obra tem distribuição da Bretz Filmes e está em exibição no Cine Una Belas Artes


A divisão dos capítulos do documentário é “diária”. Na tela, um lettering que parece escrito à mão, como nos mercados populares, anuncia o dia e a quê se refere. Uma escolha coerente para falar de um ritmo que nasceu manual, sendo caracterizado por instrumentos de percussão como pandeiro, cuíca e tantan, e embalado nas melodias do cavaquinho. 

O primeiro ato chega a causar estranhamento ao mostrar o sambista carioca em uma apresentação em um bar… de São Paulo. A câmera acompanha a fila do estabelecimento dobrando o quarteirão, provando não haver fronteiras para a qualidade musical de “Moa”, como ele é carinhosamente chamado. E a câmera, sabiamente, recorre à metáfora e mostra a cabeça de Moacyr acima das outras. É a criatividade acima da média. 


Mas é no Rio de Janeiro, a cidade natal que o compositor defende com paixão, que a história se desenvolve. Como boêmio inveterado que é o cenário não podia ser outro: a rua. 

É nas praias, feiras, botecos e, sobretudo, nas rodas de samba — onde canta de pé, como quem dispensa o trono que lhe caberia no panteão da música — que Moa constrói suas relações. 

Desses territórios vêm os depoimentos de amigos e admiradores. Entre eles, nomes como Maria Bethânia, Teresa Cristina, Zeca Pagodinho, Guinga, Zé Renato, Jards Macalé, a mãe de Moacyr e até a viúva de Aldir Blanc, parceiro de composição. 


Ao falar sobre Blanc, o documentário encontra uma ponta de tristeza. Os dois descobriram morar no mesmo prédio durante uma carona. Apesar da ótima história sobre a composição de “Coração do Agreste”, tema de Beth Faria em “Tieta”, Moacyr conta, saudoso: “com Hélio Delmiro aprendi a ouvir e com Aldir Blanc aprendi a falar”. 

A cena se passa entre os milhares de livros de Blanc, numa recordação da amizade que ensinou muito a Moa. “Quando cheguei ele já tinha lido a metade disso tudo, e eu não tinha lido nenhum; por isso ele tinha tanta coisa pra compor, pra contar”.  


Samba do Trabalhador

Moacyr Luz é conhecido por uma roda de samba que criou (ou simplesmente aconteceu, como afirma um dos amigos) e que há duas décadas atrai muita gente: o Samba do Trabalhador. 

Toda segunda-feira à noite uma multidão se reúne no Clube Renascença, no Andaraí. O local já foi palco para Beth Carvalho e Martinho da Vila, e é onde o velho Moa, ainda que não tenha mais a destreza da juventude, luta pela resistência do gênero. 

Mesmo que o samba movimente o corpo e faça o espectador sorrir e querer dançar, a câmera desliza pelos instrumentos e acompanhando o biografado. 

As mãos trêmulas, a fala quase arrastada e os passos numa cadência diferente, mais lenta, são observados com gentileza pela lente, deixando de lado os problemas de saúde de Moacyr. 


Imagens de arquivo e cenas do filme "Dia de Feira com Moacyr Luz" (2005, direção de Hugo Moss) também trazem detalhes da vida do compositor, que escreve de trilha de novela a samba-enredo e tinha a música como destino. 

Neto favorito de um avô clarinetista do Corpo de Bombeiros, ele chegou ao Méier e conheceu o guitarrista Hélio Delmiro, que foi um grande professor para ele. 

Se no início do longa Moacyr pede licença à estátua de Pixinguinha para que o filme seja batizado com o título informal de embaixador, dado por algumas pessoas ao flautista autor do famoso chorinho “Carinhoso”, no decorrer do documentário Moa se mostra merecedor da honraria. 

Pelas esquinas e batucadas vai conciliando, agregando pessoas e semeando lições em suas letras. Sempre com algum petisco e uma bebida. Afinal, como o próprio Moacyr escreveu em parceria com Toninho Geraes, “amigo eu nunca fiz bebendo leite, amigo eu não criei bebendo chá”. 


Ficha Técnica:
Direção: Tarsilla Alves
Roteiro: Gabriel Meyohas e Hugo Sukman
Produção: RodaFilmes e OndaFilmes
Distribuição: Bretz Filmes
Duração: 1h35
Exibição: Cine Una Belas Artes - sala 1
Classificação: 12 anos
País: Brasil
Gêneros: documentário, biografia

13 agosto 2025

"No Céu da Pátria Nesse Instante" mostra a tensão provocada pela polarização das eleições de 2022

Documentário dirigido por Sandra Kogut traz um retrato histórico necessário do Brasil contemporâneo
(Fotos: O2Play)
 
 

Jean Piter Miranda

 
Os atentados de 8 de janeiro de 2023 marcaram profundamente a história recente do Brasil. Uma história que ainda ecoa pelo país, seja pela polarização, que ainda persiste, seja pela luta por anistia aos que atacaram a democracia. 

Mas como foi que chegamos a esse ponto? A resposta está em “No Céu da Pátria Nesse Instante”, documentário da diretora Sandra Kogut, que estreia nesta quinta-feira (14) nos cinemas. 

A produção leva para as telas pessoas comuns que militavam em favor de Lula e de Bolsonaro. Cada uma contando sobre suas expectativas nos dias que antecederam as votações em primeiro e segundo turnos das eleições de 2022. 

Diretora Sandra Kogut

Marcelo Freixo, então candidato a governador do Rio, e sua esposa, a roteirista Antônia Pellegrino são acompanhados em atos de campanha. Assim como uma família bolsonarista também participa do documentário. Kogut equilibra bem o tempo de tela de cada lado, sem favorecer nenhum deles. 

Outros personagens são inseridos ao longo do documentário. Além dos militantes, também aparecem servidores da Justiça Eleitoral. O treinamento de mesários, a preparação das urnas e os desafios para realizar as eleições em todos os municípios, em especial os do Norte do país. 


Tensão no ar

Tudo vai sendo apresentado de forma leve, embora seja perceptível um clima de tensão no ar. É como se todo mundo soubesse o que estava por vir. Os atos de campanha dos dois lados. O medo de sair com camisa de candidato, o clima tenso de ir às ruas fazer campanha. Bolsonaristas confiantes na vitória. Lulistas temerosos com o futuro. 

Caminhoneiros organizados, pastor pedindo voto, a bomba no aeroporto de Brasília, denúncia de boca de urna e as blitze ilegais no dia das eleições. Tem muita coisa nessa complexa história que se apresenta em ordem cronológica, sem narrador. 

A tensão que vai aumentando durante a apuração. Uma história que a gente viu e viveu, mas que, ao ser revista, traz de volta um turbilhão de emoções, independente de que lado você esteja. 


Vem o resultado, vem a posse e a explosão do 8 de janeiro. Apoiadores do governo derrotado inconformados com o resultado das eleições e a vitória de Luis Inácio Lula da Silva invadem o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal (STF). Violência, quebradeira, vandalismo, pedido de intervenção militar. Um dia que entrou para história e que ainda não acabou. 

O documentário reconta essa história sem adjetivar ninguém. Não faz juízo de valor, não debocha, não ironiza, nem comemora. É uma produção honesta e muito bem feita que merece ser vista para que tudo o que ocorreu não caia no esquecimento.


Ficha técnica:
Direção e roteiro:
Sandra Kogut
Produção: Ocean Films em coprodução com Marola Filmes, Kiwi Filmes, GloboNews, Globo Filmes e Canal Brasil
Distribuição: O2 Play e Lira Filmes
Exibição: nos cinemas
Duração: 1h45
Classificação: 12 anos
País: Brasil
Gênero: documentário

23 maio 2025

Caótico como ela, o documentário "Ritas" decepciona e não sai do lugar comum

Produção traz a última e inédita entrevista da artista, e registros feitos pela própria (Fotos: Biônica Filmes)
 
 

Mirtes Helena Scalioni

 
O que faz a diferença num documentário? Primeiramente, as entrevistas e imagens inéditas, principalmente quando o filme for sobre alguém muito conhecido. Só que esse não é o caso de "Ritas", sobre a nossa rainha do rock, com direção de Oswaldo Santana.

O longa entrou em cartaz nos cinemas no dia 22, quando se celebra o "Dia de Rita Lee" na cidade de São Paulo e pode ser conferido em BH no Centro Cultural Unimed-BH Minas, Cine Una Belas Artes e Cinemark Pátio Savassi.


Estão lá a eterna irreverência e desobediência da ovelha negra, a entrada - e saída traumática - dos Mutantes, o casamento certinho com Roberto de Carvalho, tudo entremeado com velhos e manjados clipes. Novidade nenhuma.

Se fosse possível apontar uma característica de "Ritas", talvez essa seja o tom meio blasée com que tudo é mostrado e narrado. Nada de novidades ou de surpresas, já que a vida da cantora foi exaustivamente exposta e comentada assim e ela morreu, em 8 de maio de 2023.


Quem sabe o documentário surtisse outro efeito se tivessem esperado mais tempo para lançá-lo, permitindo que o público sentisse saudade da artista. O longa é inspirado na autobiografia publicada por Rita Lee em 2016 e é ela também quem narra a história. Por enquanto, tudo parece extremamente óbvio.

Outro problema do filme são as muitas idas e vindas. Os clipes, recortes e entrevistas não obedecem a uma ordem cronológica, misturando temas como bichos de estimação, apresentação com Gilberto Gil, shows polêmicos, recantos da casa onde ela morou, infância, censura, plantas, doença, misticismo. Tudo na mais absoluta desordem. Chega a cansar. 


E olha que Oswaldo Santana trabalhou na montagem de outros filmes, entre eles, "Tropicália" (2012), "Bruna Surfistinha" (2011), e  "Tremores Urbanos" (2019). E também atuou como roteirista do longa "Ouvidor" (2023). "Ritas" é sua primeira produção como diretor. 

Como há outro documentário sobre a estrela, "Rita Lee: Mania de Você" de Guido Goldemberg, em cartaz no canal Max, a comparação é inevitável. Não que seja uma obra-prima, mas o filme do streaming é mais surpreendente e organizado do que "Ritas". 

Ele revela mais a intimidade da cantora, com participação de familiares e amigos, dando voz a artistas importantes como Gilberto Gil e Ney Matogrosso contando histórias. Convém assistir. 


Ficha técnica:
Direção e roteiro: Oswaldo Santana e Karen Harley
Produção: Biônica Filmes em coprodução com a 7800 Productions e Claro
Distribuição: Paris Filmes e codistribuição Biônica Filmes
Exibição: Cine Una Belas Artes - sala 2; Centro Cultural Unimed-BH Minas, sala 2; e Cinemark Pátio Savassi, sala 8
Duração: 1h22
Classificação: 14 anos
País: Brasil
Gênero: documentário

26 fevereiro 2025

Documentário "Chica da Silva - A Descoberta do Testamento" apresenta a mulher por trás do mito

Vídeo e série de reportagens do TJMG originados a partir a localização do documento são verdadeiras
aulas de história afrocentradas (Fotos: Gláucia Rodrigues)


Maristela Bretas


O trabalho minucioso de um grupo de historiadores e jornalistas do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) a partir da localização do testamento de Francisca da Silva Oliveira resultou no documentário "Chica da Silva - A Descoberta do Testamento". Uma aula de história que foge dos livros e mostra outra face daquela que se tornou uma das figuras mais influentes da sociedade colonial mineira do século XVIII.

Ao completar 229 anos de sua morte, ocorrida em 15 de fevereiro, Chica da Silva, ex-escravizada, foi alforriada e se tornou Dona Francisca da Silva Oliveira, tem sua vida novamente contada. Agora, a partir do testamento dela, localizado após mais de 200 anos no Fórum da Comarca de Serro, cidade mineira ao qual pertenceu o antigo Arraial do Milho Verde, onde Chica nasceu.

Capa do testamento descoberto de Chica da Silva

O documentário de 52 minutos, produzido pela equipe de Comunicação e disponibilizado no canal oficial do YouTube do TJMG, desmistifica a mulher considerada ousada para sua época e faz uma reparação histórica ao mostrar uma Chica da Silva até pouco tempo desconhecida.

Ao contrário do filme "Chica da Silva" (1976), de Cacá Diegues, e da novela de mesmo nome, exibida pela extinta TV Manchete entre 1996 e 1997, a produção do TJMG reúne fotos, ilustrações, documentos oficiais da época e diversos depoimentos de historiadores, entre eles o da professora da UFMG e biógrafa de Chica da Silva, Júnia Furtado. 

Casa de Chica da Silva em Diamantina

Além de entrevistas de funcionários de museus e do IEPHA, garimpeiro, mestre vissungueiro, madres do Mosteiro Nossa Senhora de Macaúbas, em Santa Luzia, e até descendentes da 7ª e 8ª gerações de Francisca da Silva Oliveira. 

As cidades mineiras de Diamantina, Serro, Milho Verde e Santa Luzia, também são mostradas no documentário, cada uma com sua importância na vida pessoal e religiosa de Chica da Silva. 

Sob a direção executiva de Comunicação de Mariana Brito, participaram dos trabalhos as jornalistas Daniele Hostalácio e Kátia Matos, locução de Mércia Lívia, imagens de Márcio Rodrigues, fotos de Gláucia Rodrigues, edição de Elton Lizardo, coordenação de Francis Rose, Eudes Júnior e Fernando Capreta.

Mosteiro Nossa Senhora de Macaúbas, em Santa Luzia

Kátia Matos explica como foi a produção de "Chica da Silva - A Descoberta do Testamento". "Era para ser uma reportagem, que acabou virando documentário por causa do volume de depoimentos, havia muitos aspectos importantes. Primeiro nós fomos colhendo os depoimentos dos historiadores. Daí o material era muito grande, então ele virou um documentário". 

Ela conta ainda que precisava mostrar também o testamento, que é a base do documentário, cuja descoberta deu origem às reportagens. "Eu pensei: vou pegar o testamento, que já estava transcrito pela Júnia Furtado, e dividi-lo. A partir dos fragmentos da história que está no testamento, eu fui colocando as falas de cada entrevistado de acordo com as partes do documento. Foi quase um ano de trabalho", explicou Kátia Matos.

Gravura exposta na Casa de Chica da Silva (Reprodução)

Além do documentário, uma série com quatro reportagens para o site do TJMG, que podem ser conferidas CLICANDO AQUI, detalha passo a passo a trajetória de Chica da Silva a partir da descoberta do testamento. 

Fizeram parte deste trabalho as jornalistas Daniele Hostalácio, Kátia Matos, Daniele Hostalácio, Manuela Ribeiro, Mariana Maia, com fotografias de Gláucia Rodrigues, design de Pedro Moreira e edição de web de Danilo Pereira.

Daniele Hostalácio, responsável pela reportagem e edição das matérias da série, conta que "o testamento é a voz da própria personagem. No documento, ainda que ele, provavelmente, tenha sido ditado e não escrito por Chica da Silva, porque possivelmente não era alfabetizada e só sabia assinar o nome, ela fala sobre ela, onde nasceu, quem eram os pais, o nome de todos os filhos, o que vai deixar para as filhas, para a mãe". 

A jornalista explica ainda que "ao trazer à luz o testamento, você traz também a voz de Chica da Silva. Uma personagem que viveu no século XVIII e que, ao longo dos séculos, por diferentes motivos, teve a história de vida muito descolada do que foi a personagem de carne e osso que viveu naquele período".

Trabalho de restauração do testamento

Documento histórico

Para o presidente do TJMG, desembargador Luiz Carlos de Azevedo Corrêa Junior, "o documentário demonstra que o compromisso social do Tribunal de Justiça também compreende o resgate da história como forma de contribuição para entendermos o presente. Nossa expectativa é que, por meio do testamento, novas historiografias sobre Chica da Silva possam ser construídas. Esperamos que o documento impulsione novos estudos em torno dessa personagem", afirmou.

O testamento descoberto será restaurado para integrar o acervo do Museu da Memória do Judiciário Mineiro (Mejud) do TJMG, juntamente com a carta de alforria de Chica da Silva, e disponibilizados no futuro para a coletividade. 

Ele revela vários aspectos da vida de Chica da Silva, que foi comprada de outro senhor feudal, alforriada em seguida e manteve uma união sólida e de amor por 17 anos com o desembargador João Fernandes de Oliveira, maior contratador de diamantes da época. Com ele teve 13 filhos, todos com o sobrenome do pai, e se tornou a mulher mais influente da região de Diamantina.

Carta de alforria de Chica da Silva

Apesar das inúmeras ilustrações de Chica da Silva, senti falta de uma imagem de João Fernandes de Oliveira no vídeo, possivelmente por não ter sido descoberto nenhum registro até agora.

No documentário, Chica da Silva, uma mulher preta de corpo esguio, é mostrada por meio de gravuras em variadas situações, inclusive incorporando características de mulheres brancas. Apesar de ter sido escrava e ter sofrido com o racismo e misoginia, ela mantinha escravos em suas propriedades e eram considerados seu maior patrimônio e herança a ser deixada para os filhos e filhas.

Confira o documentário completo abaixo:


Ficha técnica:
Produção: Equipe de Comunicação do TJMG
Exibição: canal do TJMG no Youtube
Duração: 52 minutos
Classificação: livre
País: Brasil
Gênero: documentário

29 janeiro 2025

"Trilha Sonora Para Um Golpe de Estado" mistura jazz, colonialismo e muita criatividade

Documentário chega aos cinemas brasileiros após conquistar vários prêmios em festivais internacionais
e é forte candidato ao Oscar 2025 (Fotos: Pandora Filmes)


Eduardo Jr.


Sem os mesmos holofotes de obras como “Ainda Estou Aqui”, “Emília Perez” ou “Wicked”, o longa “Trilha Sonora Para um Golpe de Estado” ("Soundtrack To a Coup D’Etat"), indicado ao Oscar 2025 para o prêmio de Melhor Documentário, chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (30) e promete agradar bastante ao público. 

Dirigido pelo cineasta belga Johan Grimonprez, o longa costura de forma genial o colonialismo da Bélgica sobre o Congo, o interesse internacional no país que buscava ser independente e a produção musical do jazz norte-americano entre as décadas de 1950 e 1960. A distribuição fica a cargo da Pandora Filmes. 


O documentário chama a atenção não só por reunir nomes como Malcolm X, Nina Simone e Thelonious Monk, mas porque, desde a estreia no Festival de Sundance em 2024, vem conquistando prêmios como o Especial do Júri por Inovação Cinematográfica, Prêmio de Melhor Roteiro e de Melhor Montagem pela Associação Internacional de Documentários. 

Tudo começa com a apresentação dos artistas Abbey Lincoln e Max Roach, que entraram em uma assembleia da ONU para denunciar o assassinato do líder congolês Patrice Lumumba. 

Este, que pode parecer um spoiler, é apenas o primeiro passo para uma trilha investigativa sobre tudo o que foi arquitetado para que Bélgica e Estados Unidos mantivessem seus planos imperialistas sobre o país africano. 


E como o jazz se funde a essa trama? A frase de Max Roach pode ser vista como resposta: “Nós usamos a música como uma arma contra a desumanidade do homem contra o homem”. A linguagem universal da música foi o suporte para contar partes dessa história. 

No desenrolar do documentário o espectador vai descobrindo como os Estados Unidos tentaram se aproveitar do talento de artistas como Dizzy Gillespie e Louis Armstrong, como a Bélgica se comportava no papel de colonizadora e como a ONU foi usada nesta trama. Tudo isso costurado com maestria na edição de Rik Chaubet e no design de som de Ranko Paukovic. 


A excelente produção de arquivo de Sara Skrodzka entrega entrevistas, discursos políticos da época e apresentações musicais que aderem perfeitamente à obra, construindo uma narrativa que impressiona. 

Grimonprez, além de dirigir, roteiriza uma obra que tem força para se manter na memória, tamanha inventividade colocada na tela. Trata-se de uma visão anti-imperialista, criativa e educativa, posto que tal capítulo da história mundial não se ensina nas escolas (eu, pelo menos, não tive uma aula tão esclarecedora sobre esse golpe). E certamente, as aulas que tive foram mais exaustivas, enquanto as duas horas e meia do documentário desfilaram hipnotizando meu olhar. 

E parece jazz. Dá a impressão de certa desordem em alguns instantes, provoca tensão, mas no final tudo se harmoniza e você se pega até sorrindo com a genialidade da obra. 

Tal qual um show de blues, pode ser um documentário apresentado em um palco à meia luz, mas no final, aposto que você aplaudir. Confira e me conte. 


Ficha Técnica:
Direção: Johan Grimonprez
Distribuição: Pandora Filmes
Exibição: nos cinemas
Duração: 2h30
Classificação: 14 anos
Países: Bélgica, França, Holanda
Gênero: documentário

04 janeiro 2025

Especial: oito melhores filmes nacionais de 2024



Patrícia Cassese


Falamos anteriormente, na lista dos melhores filmes de 2024 (clique aqui para conferir) sobre o sucesso "Ainda Estou Aqui". A jornalista Patrícia Cassese fez uma seleção muito especial para o Cinema no Escurinho das melhores produções nacionais, incluindo esta que pode ser a representante do Brasil no Oscar 2025. Ela fala um pouquinho sobre cada uma das obras para ajudar nossos seguidores na hora de escolher o que assistir.

1) Ainda Estou Aqui (Walter Salles)
Lançado nos cinemas do Brasil no início de novembro, o filme de Walter Salles é baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, que, por sua vez, traz um recorte da família do autor nos anos 1970, a partir do desaparecimento do pai, Rubens Paiva. 

Com uma atuação soberba de Fernanda Torres como protagonista, bem como um elenco, no todo, afinado, o filme acerta ao lançar seu foco sobre um período traumático da história do Brasil. "Ainda Estou Aqui" está em cartaz nos cinemas e já foi visto por mais de 3 milhões de espectadores no país.

"Ainda Estou Aqui" - Alile Dara Onawale

2) Malu (Pedro Freire)
Outra produção com um viés biográfico, pero no mucho. Ao fazer um filme em homenagem à sua mãe, a atriz Malu Rocha (1947 - 2013), Pedro Freire adota algumas liberdades poéticas - em vez de dois filhos, por exemplo, na trama, ela tem só uma, Joana (interpretada por Carol Duarte). 

Destaque para o elenco, com particular ênfase na atuação de Yara de Novaes, como a personagem título. Ao fim, é impossível não se apaixonar por Malu ou não partir para os sites de pesquisas para saber mais sobre essa mulher tão fascinante. Em cartaz no Centro Cultural Unimed-BH Minas.

"Malu" - Primeiro Plano

3) Motel Destino (Karim Ainouz)
A assinatura de Karim Ainouz já é meio caminho andado para quem gosta de bom cinema. Aqui, Fabio Assunção capitaneia o elenco, junto a Iago Xavier e Nataly Rocha. Xavier é o forasteiro que adentra o Motel Destino, situado à beira de uma estrada no litoral cearense, transformando a vida de todos ali. Em tempo: o filme (confira o trailer) já pode ser visto no streaming, na plataforma Telecine.

4)  (Rafael Conde)
O filme do mineiro Rafael Conde aborda também a história de uma família atingida pela ditadura militar: no caso, a do mineiro José Carlos Novais da Mata Machado, o Zé, do título. Sim, tal qual "Ainda Estou Aqui", um filme biográfico envolvente e necessário. A cereja do bolo é a presença de Yara de Novaes (também de "Malu") no elenco. "Zé" está disponível nas plataformas por assinatura Claro TV+ e Vivo Play.

"Zé" - Embaúba Filmes

5) O Dia que Te Conheci (André Novais Oliveira)
Uma produção da Filmes de Plástico que encantou o Brasil em sua passagem pelos cinemas (confira o trailer clicando aqui). Em cena, Zeca (Renato Novaes) é um bibliotecário de uma escola pública que, certo dia, é demitido, com a justificativa de que está constantemente chegando atrasado ao trabalho. 

Ele aceita uma carona de Luísa (Grace Passô) e os dois começam a trocar confidências sobre suas vidas. Ótimos diálogos e muito carisma nesta história sem glamour, mas de muito encanto. Disponível na Globoplay e Canal Brasil.

"O Diabo na Rua no Meio do Redemunho" - Globo Filmes

Hours concours

O Diabo na Rua no Meio do Redemunho (Bia Lessa)
Essa transposição da icônica obra de Guimarães Rosa, "Grande Sertão: Veredas", para o cinema, com direção de Bia Lessa, é uma pepita, uma obra-prima. 

Nos papéis de Riobaldo e Diadorim, Caio Blat e Luiza Lemmertz estão irretocáveis. Filmado em um galpão, o longa traz soluções inventivas que arrebatam. Bia Lessa, como se sabe, também havia adaptado a obra para o teatro, em montagem que passou por BH.

Bônus

Aproveitando as indicações, a listagem ganha um bônus abordando o quesito documentários. Destaque para "Othelo, o Grande", biografia do ator Grande Otelo, dirigida por Lucas H. Rossi dos Santos. O filme está previsto para entrar em breve no Canal Brasil e no Globoplay.

E, ainda, “Nas Ondas de Dorival Caymmi”, sobre o saudoso cantor, compositor, pintor e instrumentista baiano. Direção de Locca Faria. Este documentário também deverá estrear em breve nas plataformas de streaming.