16 fevereiro 2021

"Cidade Invisível", uma belíssima e instigante produção que conecta a realidade às lendas do folclore brasileiro

 Marco Pigossi é o policial ambiental que descobre criaturas folclóricas vivendo entre os humanos (Fotos: Alisson Louback/Netflix)

Silvana Monteiro


Criada por Carlos Saldanha, a série "Cidade Invisível", dirigida por Júlia Pacheco Jordão e Luis Carone, e roteirizada por Raphael Draccon e Carolina Munhóz, lembra bastante o seriado "Once Upon A Time" ("Era Uma Vez"). Enquanto a produção norte-americana relaciona os contos de fada infantis, a produção brasileira reúne em um espetacular enredo, as lendas populares do nosso folclore.

A série já encanta na abertura, que tende a envolver pela confluência de imagens em uma composição que prende o olhar. Carlos Saldanha consegue interligar comunidade ribeirinha, praia e ocupação urbana com muita maestria, fazendo com o que telespectador reflita sobre a invisibilidade das pessoas tanto no sentido figurado, quanto em sua real condição. 
 

 
Outro ponto positivo de "Cidade Invisível" é que os personagens que não levam os nomes específicos de suas lendas podem ser interpretados à maneira local, pela leitura regional dos telespectadores. Como por exemplo, a de Inês, vivida por Alessandra Negrini, e a de Tutu, interpretado por Jimmy London. Afinal, o Brasil tem centenas de lendas e cada delas toma características únicas.
 

 
Na história, Erick (Marco Pigossi) é um policial ambiental casado com a ativista Gabriela (Julia Konrad) e pai de Luna (Manu Dieguez). Durante os festejos em uma comunidade ribeirinha cercada pela Mata Atlântica, na região metropolitana do Rio de Janeiro, onde Gabriela desenvolve algumas atividades, uma tragédia vai por fim à tranquilidade familiar.


A partir desse ponto e do encontro de um boto rosa em praia carioca, pai e filha se tornarão o foco de um enredo cheio de mistérios e magia. A descoberta dessas criaturas folclóricas vivendo entre os humanos vai levar Erick a buscar respostas para seu passado e fazer com que ele e sua filha fiquem definitivamente ligados aos moradores do lugar.

Uma das boas surpresas da série é a interpretação do Curupira entregue por Fábio Lago, um excelente ator que estava há tempos ausente das produções. O experiente José Dumont também domina no papel de Ciço, um ribeirinho que vive na pele as crenças e lendas de sua ilha de pescadores. 
 
 
O seriado também traz caras novas e com personagens que encantam pela interpretação: Jessica Córes vive Camila, uma belíssima sereia negra, e Wesley Guimarães, vivendo Isac, que dá vida ao Saci.

Fica aqui um ponto que vale reflexão: será que tudo que vemos é realmente aquilo que acontece? Seriam os excluídos, minorias, transeuntes e pessoas em situação de rua, seres especiais de uma "cidade invisível"? Abra bem seus olhos e ouvidos e tente entender aquilo que nem sempre parece o óbvio. 
 



Ficha técnica:
Direção:
Carlos Saldanha
Exibição: Netflix
Duração: Média de 30 minutos por episódio (1ª Temporada - 7 episódios)
Classificação: 16 anos
País: Brasil
Gêneros: Drama / Fantasia / Série de TV

14 fevereiro 2021

“O Tigre Branco” faz o elogio da malandragem como arma para driblar a injustiça social

Longa indiano acaba de chegar à Netflix com muito sucesso, abordando a luta de classes (Fotos: Netflix)


Mirtes Helena Scalioni


A desigualdade é gritante. Enquanto uns poucos se esbaldam em carrões, mansões e fartura, a maioria vive a miséria das ruas e a fome. Frequentemente, empresários bem-sucedidos entregam malas de dinheiro a políticos corruptos, num círculo perverso de troca de favores para manutenção das diferenças.

Nas periferias, os miseráveis que mal têm o que comer, são subjugados e, submetidos à violência, obrigados a pagar propinas a milicianos. Raramente, os políticos aparecem nos bairros pobres. A não ser, claro, nas vésperas das eleições, com discursos e promessas de melhorias que nunca acontecem. Eis aí um ambiente propício para o surgimento de figuras de ética duvidosa, que mentem, trapaceiam e não medem escrúpulos para vencer na vida.


Ao contrário do que parece, não se trata do Brasil. Pelo menos neste caso, o país em questão é a Índia, onde se passa “O Tigre Branco” ("The White Tiger"), contundente e festejado filme de Ramin Bahrani, americano de origem iraniana, cuja obra tem sido comparada ao premiado “Parasitas”. O longa acaba de chegar à Netflix com muito sucesso e tem, no cerne da história, a luta de classes possível numa situação em que os ricos já começam a disputa com milhões de pontos à frente dos pobres.


Baseado no livro homônimo do escritor indiano Aravind Adiga, o filme conta a trajetória de Balram Hawai (Adarsh Gourav), da infância em uma vila paupérrima da Índia, até chegar a empreendedor de sucesso em Bangalore, cidade de mais de 8 milhões de habitantes que é o centro tecnológico do país. Por mérito próprio, inteligência, sorte e malandragem, o menino pobre que vence na vida é comparado a um tigre branco, maravilha raríssima da natureza que só aparece no mundo a cada 20 anos.


A vida de Balram começa a mudar quando ele vai para a capital Deli para se tornar motorista de Ashok (Rajkummar Rao), filho de um empresário milionário e, claro, corrupto. Inteligente e convenientemente submisso, o empregado escuta segredos e aprende artimanhas enquanto conduz o patrãozinho e sua bela mulher Pink (Priyanka Chopra Jonas) pela cidade e estradas da Índia. O casal se apresenta como civilizadamente ocidentalizado, mas, quando convém, topa ser tradicional e seguir as regras da família.


Pode-se dizer, sem medo de errar, que o sucesso de “O Tigre Branco” vai além de uma boa história bem construída, roteirizada, filmada, editada e dirigida. As atuações são perfeitas e convincentes, principalmente a do protagonista. Impressiona a interpretação de Adarsh Gourav, excepcional em seu primeiro papel principal. Há momentos em que o espectador fica em dúvida: ele está sendo sincero?

Narrador em off da própria trajetória, recurso que nem sempre agrada, aqui a narração, os flashbacks e os comentários só enriquecem o filme, até porque a linguagem transita entre o sarcasmo, a sinceridade, a esperteza e a bem-vinda reflexão sobre a ética, seus limites e universalidade.

 
O final, meio brusco, não compromete “O Tigre Branco”, que constrói ao longo da história uma interessante metáfora com países como a Índia (e o Brasil): uma granja onde centenas de galos e galinhas estão engaiolados à espera de serem abatidos. As aves assistem diariamente a morte de seus iguais e, a não ser que consigam fugir, estão irremediavelmente condenadas como todos os que ali vivem.
 

 
Ficha técnica:
Direção: Ramin Bahrani
Exibição: Netflix
Duração: 2h07
Classificação: 16 anos
País: Índia / EUA
Gêneros: Drama / Policial