27 novembro 2025

Premiado documentário “Apolo” traz aos cinemas paternidade trans e violência institucional

Casal também faz do longa um registro para o filho que vai chegar, apresentando o mundo que o espera
(Fotos: Divulgação)
    
 

Eduardo Jr.

 
“O que eu era antes de eu ser?”. A provocação nos primeiros segundos de tela, que parece vinda de um bebê ainda no ventre, dá o tom do documentário brasileiro “Apolo”. 

O filme, produzido pela Capuri Filmes e distribuído pela Biônica Filmes, chega aos cinemas dia 27 de novembro e marca a estreia da atriz Tainá Müller na direção, realizada em parceria com a atriz e artista musical Ísis Broken, que também estreia como diretora e é protagonista da obra. 

O casal transgênero Ísis e Lourenzo apresentam o dia a dia da gestação de Apolo. A espera pelo bebê e a busca por cuidados arremessa na vida do casal uma série de episódios de preconceito e transfobia. Tudo porque a normatividade não está preparada para ver o pai, um homem trans, gerar uma criança.

Além de normalizar diferentes configurações familiares, alertar sobre práticas discriminatórias endossadas pelo Estado e valorizar o amor livre, o casal também faz do longa um registro para o filho que vai chegar, apresentando o mundo que o espera.    


E o mundo que Apolo vai encontrar é retratado de forma crua, sem filtros. Apesar de os parentes de Ísis e Lourenzo acolherem o casal, em outros ambientes as experiências vividas geram revolta no espectador (aquele com um mínimo de humanidade). 

São situações que vão do não reconhecimento do nome social no sistema de saúde à violência de chamar uma pessoa gestante de “coisa”.   

Só quando o casal deixa o interior e se muda para a capital São Paulo é que o atendimento especializado humanizado se apresenta. Uma demonstração de que o Estado precisa educar e preparar os profissionais para exercer a empatia, principalmente os que estão fora dos grandes centros urbanos. 

Outro desconforto da obra reside no campo da imagem. Os enquadramentos para os depoimentos soam infantis. Obviamente, são planejados, mas os personagens centralizados parecem ter posições demarcadas, demonstrando estarem pouco à vontade com a câmera observando as conversas. 


Apesar desses pontos, o documentário é sintonizado na esperança. A mesma esperança que muitas mulheres chefes de família (como a avó, a tia e a mãe de Ísis) cultivam a cada dia. 

A fotografia com luz mais quente, as referências à espiritualidade que sustenta o casal e a metáfora do amor no centro do universo são elementos que riscam da obra o clichê do relato de dor de quem é colocado à margem. 

O roteiro e a montagem também demonstram sabedoria. A exemplo da sequência da visita à família, carregada de euforia, seguida dos desafios da vida a dois, da primeira casa, de administrar um futuro em transformação.  

O diálogo está sempre presente no documentário. E é ele quem se veste de solução, até para dilemas pessoais, como a interrupção do uso de hormônios por Lourenzo durante a gestação. 

A situação mexe com o corpo dele, que vislumbra uma regressão no processo de transição e se vê desafiado sobre a amamentação. A conversa sincera com Ísis facilmente se configura como um dos momentos mais emocionantes da obra — eu disse ‘um dos’, pois a obra reserva cenas importantes até o final. 


Em suma, esta é uma obra que fixa imagens que a sociedade não está habituada a ver. Propõe reflexões sobre nossa postura diante do afeto LGBTQIAPN+. Nos apresenta alguns dos dramas de um casal transgênero e expõe violências institucionais que precisam ser tratadas para, então, viabilizar um futuro de respeito e igualdade. 

A estreia ainda vai acontecer, mas os prêmios já começaram a chegar. “Apolo” Foi premiado no Festival do Rio nas categorias Melhor Longa-Metragem Documentário e Melhor Trilha Sonora Original, realizada pelo músico Plínio Profeta. 

No 33º Festival Mix Brasil de Cultura e Diversidade, a produção conquistou o Coelho de Prata (Prêmio do Público) de Melhor Longa Nacional e uma Menção Honrosa do Júri na categoria de Melhor Longa-Metragem. 

“Apolo” e sua proposta de fazer refletir merece ser visto na telona. Cada um de nós precisa responder ao questionamento inicial do filme e outros, do tipo: um casal trans não pode amar? O bebê nascido de um casal trans também merece sofrer as mesmas violências que o pai e a mãe? Se somos uma sociedade que despreza e maltrata o que difere da gente, quem somos nós?    


Ficha Técnica:
Direção: Tainá Müller e Isis Broken
Roteiro: Tainá Müller, Tatiana Lohmann, Isis Broken, Lourenzo Duvale
Produção: Capuri, Biônica Filmes e Puro Corazón
Distribuição: Biônica Filmes
Duração: 1h22
Classificação: 12 anos
País: Brasil
Gênero: documentário

25 novembro 2025

Os dilemas da maternidade pautam o sensível "Amada"

Filme italiano aborda os temores e anseios sob o ponto de vista de duas mulheres de idades e realidades
bem distintas (Fotos: Divulgação)
 
 

Patrícia Cassese

 
Em curso até o dia 29 de novembro e com acesso gratuito pelo site https://festivalcinemaitaliano.com, o Festival de Cinema Italiano traz, como de praxe, produções recentes que valem muito ser vistas, até pelo fato de que nem todas efetivamente entrarão em cartaz nos cinemas do Brasil. 

Entre as opções, um título aborda os temores e anseios que a perspectiva da maternidade provoca sob o ponto de vista de duas mulheres de idades e realidades bem distintas. Estamos falando de "Amada" ("Amata"), que, vale assinalar, é uma adaptação do livro homônimo de Ilaria Bernardini, com direção de Elisa Amoruso.


Nunzia (Tecla Insolia) é uma jovem de 19 anos, solteira, enquanto Maddalena (Miriam Leone), uma bem sucedida engenheira na faixa dos 40 anos, casada. Ambas sem filhos. No curso da narrativa, o momento vivido pelas duas é contado paralelamente, sem um ponto concreto de tangência. 

Morando em Milão, vinda da Sicília, Nunzia se divide entre os estudos, o convívio com as amigas com as quais partilha um apartamento e, coerentemente à idade, com os momentos de prazer desfrutados na pista de casas noturnas ou nos mais íntimos, com eventuais ficantes. 

Já Maddalena vivencia a frustração de não conseguir realizar o sonho de ser mãe. Não que não consiga engravidar, mas, sim, por conta dos sucessivos abortos espontâneos que sofre. 


Casada com Luca (Stefano Accorsi), um virtuose do piano, ela passa a se questionar quanto ao real desejo de ter um filho, aventando se as várias (e desgastantes) tentativas de gerar um ser em seu ventre não estariam vinculadas à expectativa de realizar o sonho do parceiro - e, por que não dizer, de se alinhar às regras tácitas da sociedade.

A um dado momento, Nunzia descobre estar grávida, acontecimento que se recusa a aceitar e até mesmo a compartilhar com o pai da criança, com quem, na verdade, não pretende estabelecer um compromisso. 

Sua primeira decisão é, pois, abortar, mas, ao chegar à clínica para realizar o procedimento, é informada que, de acordo com a legislação vigente no país, não poderá concluí-lo por vias legais, já que está na 13ª semana de gravidez (a Lei italiana 194 eventualmente permite o requerimento do procedimento até a 12ª). 


No entanto, Nunzia é informada quanto à existência de uma alternativa. Uma opção que, vale pontuar, se configura como uma nova versão da antiga "roda dos expostos". 

Trata-se do projeto La Culla Pela Vita ("O Berço Pelo Vida"), iniciativa real na qual a mãe pode entregar seu bebê anonimamente para a adoção, em certos hospitais ou paróquias da Itália. 

A dinâmica é simples: ela deposita a criança em um compartimento, que, na verdade, é rotatório. Naturalmente, o compartimento é totalmente preparado para este fim, constituindo-se internamente como uma espécie de "berço". 

Ao fechar a portinhola, um sensor avisa à instituição do ocorrido, fazendo com que o acolhimento ocorra em pouquíssimo tempo. A criança é, pois, de pronto encaminhada a uma unidade neonatal para exames e cuidados iniciais. Posteriormente, encaminhada à adoção.


Enquanto a hora do parto não chega, Nunzia vai burilando a ideia de se separar ou não da criança, enquanto Maddalena se debruça sobre as vantagens e riscos de recorrer à adoção, já que seu corpo, como um médico avisa, não aguentaria mais uma nova gestação. 

Neste percurso de angústia e indecisões, as duas se deparam com uma série de situações bastante familiares às mulheres, independentemente do argumento central do filme, a maternidade. 

Assim, se em alguns momentos encontram acolhida no interlóquio com outras companheiras de sexo, em outros, esbarram na incompreensão, na cobrança e na culpabilização. 

Grande parte do êxito do filme sem dúvida reside no fato de a direção ser de uma mulher, dada a necessidade precípua de uma compreensão acerca da miríade de sentimentos que invadem Nunzia e Maddalena no curso de suas respectivas jornadas. 



Com seu inequívoco lugar de fala, Amoruso oferece, ao espectador, um filme sensível e tocante, que vai fazê-lo torcer, pensar, refletir. O que, convenhamos, em se tratando do tema, não é pouco.

Vale dizer que, em entrevista à publicação Cinecittà News, voltada ao cinema, a diretora contou que foi precisamente a mensagem de grande solidariedade e irmandade entre duas mulheres que nunca se encontraram que a levou a escolher o livro como base do filme. 

"É precisamente para dizer às mulheres que devemos ajudar-nos umas às outras, que ainda vivemos tempos difíceis por uma série de razões; ainda não atingimos um nível de emancipação completa", declarou. Contradizê-la, quem há de?


Ficha técnica:
Direção: Elisa Amoruso
Roteiro: Ilaria Bernardini
Produção: Memo Films Indiana Production e Rai Cinema
Distribuição: Rai Cinema International Distribution
Exibição: gratuita pelo site https://festivalcinemaitaliano.com
Duração: 1h40
Classificação: 14 anos
País: Itália
Gênero: drama