18 novembro 2025

"Angel’s Egg": uma experiência cinematográfica para um público seleto

Obra do renomado Mamoru Oshii completa 40 anos e foi remasterizada em 4K (Fotos: Sato Company)
 
 

Jean Piter Miranda

 
Considerado por muitos um clássico da animação japonesa, “Angel’s Egg” (1985) chega aos cinemas brasileiros. A obra que completa 40 anos foi remasterizada em 4K. 

A história se passa em um mundo pós-apocalíptico onde uma menina solitária protege um ovo gigante. Entretanto, as coisas mudam quando surge um homem enigmático que busca cumprir uma missão. 

A animação tem pouco mais de 70 minutos. Um tempo que parece muito maior já que a história é bem lenta. A cidade onde a história se passa é escura e melancólica. Há água por todos os lados e a chuva se faz presente em quase todas as cenas. 


São pouco diálogos e muito silêncio. Nos primeiros 20 minutos, só há sons ambientes enquanto a menina anda de um lado para o outro carregando o ovo. 

Os primeiros diálogos só ocorrem quando surge um homem misterioso, que chega em uma espécie de tanque de guerra. Ele carrega consigo algo que parece uma cruz e, ao mesmo tempo, também se assemelha a uma espada. A partir disso, faz companhia para a menina durante o restante da história. 

Os dois seguem andando pela cidade, passando por construções que são, no mínimo, enigmáticas. Eles se deparam com fósseis, esqueletos de criaturas que habitavam o local. 


Um dos pontos altos da animação são as reflexões propostas pelo homem. Ele fala de fé, de deus, da criação, sobre o que é real ou não, em uma narrativa que passa pela lenda da arca de Noé. 

Há outros personagens na história, como os pescadores que correm atrás de sombras de peixes gigantes. São zumbis? São fantasmas? Uma nave arredondada que parece um grande olho. São muitas informações que surgem lentamente entre poucos diálogos e nenhuma explicação. 


"Angel’s Egg" é uma obra filosófica, para contemplar e refletir. Por isso é para poucos. Agrada quase ninguém e vai agradar menos ainda nos dias atuais, onde tudo é muito acelerado. 

Em tempos de Reels, micro-vídeos, feed que desliza de segundo em segundo, é difícil ver um filme que se arrasta em silêncio e não entrega respostas prontas. 

A obra é do renomado Mamoru Oshii, mesmo autor de “Ghost in the Shell” (1995). É uma boa pedida para quem gosta de animes, mangás, e de toda a cultura japonesa. Uma experiência audiovisual de beleza singular que há 40 anos foi lançada em VHS e que agora poderá ser vista na tela grande.


Ficha técnica:
Direção e roteiro: Mamoru Oshii
Conceitos visuais: Yoshitaka Amano
Distribuição: Sato Company
Exibição: Cineart Cidade - sessão 18h35
Duração: 1h11
Classificação: 10 anos
País: Japão (1985 - remasterizado)
Gêneros: fantasia, animação

17 novembro 2025

Impactante e necessário, "A Queda do Céu" finalmente entra em circuito no Brasil

Documentário aborda o alerta dos Yanomamis sobre os riscos climáticos que poderão afetar todo o planeta (Fotos: Gullane+)
 
 

Patrícia Cassese
Correspondente em Cannes

 
Em um período longínquo da história da Terra, o céu "caiu". A questão é que o evento pode se repetir - na verdade, para os Yanomamis, não há dúvida quanto a isso. Na primeira vez, os espíritos Xapiri conseguiram sustentar o firmamento. A grande dúvida é se, com a ameaça inclemente aos povos indígenas, e ao planeta como um todo, será possível repetir o feito.

Não por outro motivo, os xamãs Yanomamis alertam: nem aqueles que amealharam fortunas serão capazes de silenciar o vento da tempestade. O cataclisma será um tempo de lamentos. 

Essa profecia ocupa os primeiros minutos de "A Queda do Céu" (108'), documentário que teve première mundial na Quinzena dos Realizadores da edição 2024 do Festival de Cannes - que, aliás, o Cinema no Escurinho teve a oportunidade de acompanhar - e que agora entra em circuito nacional, com distribuição da Gullane+. Na Itália, o lançamento comercial também ocorre este mês.


A trajetória da produção

O longa é baseado no livro homônimo (Companhia das Letras, 768 páginas), escrito pelo xamã Yanomami Davi Kopenawa e pelo antropólogo francês Bruce Albert, lançado no Brasil em 2015 (na França, em 2010). Na transposição para a telona, a direção é assinada por Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha. 

Desde Cannes, a produção participou de 80 festivais no Brasil e no mundo, tendo arrebanhado mais de 20 prêmios nacionais e internacionais neste percurso. 

Entre as láureas, estão o Grande Prêmio do Júri da Competição Kaleidoscope do festival DOC NYC (maior festival de documentários dos EUA); o Prêmio Especial do Júri da Competição Internacional no DMZ Docs 2024 (Coreia do Sul); melhor Longa Documentário Internacional no 27º Festival de Guanajuato GIFF 2024  (México); Prêmio Fundação INATEL no DocLisboa 2024 (Portugal) e o Prêmio Principal Fethi Kayaalp no Festival de Documentários Ecológicos de Bozcaada 2025 (Turquia).

Exibição do filme no Festival de Cannes
(Foto: Patrícia Cassese)

No Brasil, levou para casa o prêmio de Som e Direção de Documentário no Festival do Rio e o Prêmio ABC 2025 nas categorias Direção de Fotografia, Montagem e Som, para citar exemplos. No dia 13 de novembro, a “A Queda do Céu” teve uma exibição especial na 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, com a presença de Kopenawa e de Eryk Rocha. 

A COP 30, você sabe, é tida como o principal fórum global visando a negociação de medidas de combate ao aquecimento do planeta, e reúne representantes de dezenas de países. A sessão teve lugar no Instituto Ciência de Arte, edifício histórico na Praça da República, por meio da 10ª Mostra de Cinema da Amazônia, em parceria com o Observatório do Clima. 


O ritual Reahu

Apresentações feitas, voltemos ao longa, que acompanha a comunidade de Watorikɨ, uma das aldeias Yanomami no Amazonas. Precisamente, às vésperas da realização do Reahu, ritual que marca a despedida final da alma de um falecido, bem como o encerramento do período de luto da comunidade.
 
No caso específico, a despedida concerne ao sogro de Kopenawa. A narrativa descreve práticas adotadas pelos Yanomami, como o apagamento de vestígios do falecido, o que se dá, por exemplo, com a queima de objetos pessoais (rede, adornos, flecha), bem como com as plantações por ele feitas. 

No desenrolar dos preparativos para o Reahu, como o preparo do mingau de banana, Kopenawa, bem como outros expoentes de Watoriki, compartilham reflexões e as ameaças que recaem sobre os yanomamis, principalmente no que tange ao avanço do garimpo ("que contaminam rios e os deixam turvos") e do interesse predador de madeireiros. 


Em dado momento, por meio do rádio transmissor, Kopenawa é avisado pela comunidade Koroas quanto à aproximação de uma leva de garimpeiros, e aconselha o interlocutar a tentar manter a calma possível, mediante a manifestação da vontade, por parte desse, de flechá-los. Os "estrangeiros", ou "inimigos", são chamados pelos Yanomami de "napës".

Invasão dos garimpeiros

Um parêntesis é feito no filme para falar sobre o início da invasão dos garimpeiros, que se deu com a construção da Perimetral Norte, nos primeiros anos de 1970. Neste período, a floresta e os povos indígenas assistiram, estupefatos, à chegada de tratores, motoserras, explosões com dinamite etc. "Cortaram florestas como se corta carne", aponta uma fala do filme. 

Além do maquinário, os napës trouxeram doenças. "Morreram velhos, adultos, moças, crianças...", enumera o filme. A busca pelo ouro, prata e outros metais, como a cassiterita, contam, culmina com a destruição de rios e do verde. Não bastasse, há, por parte das mulheres, o temor (justificado) do estupro. 


No entanto, no filme, os Yanomamis lembram que piores de que os próprios garimpeiros são aqueles que estão por trás dos "operários" aos quais a ação de destruição propriamente dita é delegada. 

Sonhos e espíritos

A questão dos sonhos é também abordada no documentário. "No sonho, tudo se esclarece", afiançam os Yanomamis. Principalmente quando o sonho se dá pelo poder do pó de yãkoana (ou yakoana), substância alucinógena de origem vegetal extraída da árvore de mesmo nome. Como pontua o longa, quando inalam o yãkoana, "os olhos morrem para enxergar os espíritos xapiri". 

Os espíritos xapiri são os donos da floresta, resistentes como as rochas. No Brasil, estima-se que existam, hoje, cerca de 31 mil Yanomamis. Com os que estão em território venezuelano, 35 mil. São, pois, a última morada dos xapiris.  

Raciocínio lógico dedutivo: como os xapiris são aqueles capazes de segurar o céu, se os Yanomamis desaparecerem, o cataclisma será inevitável. Virão inundações, epidemias... Um estado de caos, que, no filme, é reforçado por imagens em P&B de destruição (*). O homem branco, preveem os yanomamis, vai, então, chorar "como criança".


O alerta Yanomami, transmitido por meio de Davi Kopenawa, se alinha a gritos afins emitidos por outros povos originários, como os Krenak. São avisos que também se coadunam aos de ambientalistas, bem como de cidadãos comuns, preocupados com as mudanças climáticas em curso no planeta. Habitantes originários daquela que é a maior floresta tropical do mundo, os Yanomami têm atávico lugar de fala - e, assim, precisam ser ouvidos.

No entanto, mais que ecoar a advertência sobre a destruição das florestas - e, consequentemente, a ameaça que paira sobre os povos indígenas -, "A Queda do Céu" se destaca por mostrar pormenores de crenças, rituais e pensamentos Yanomamis, principalmente a partir do ritual fúnebre citado, mas não só. Pinturas, adereços, práticas, a culinária... 

Tudo isso faz de "A Queda do Céu" uma experiência riquíssima e impactante. Ao espectador menos enfronhado nas questões do povo Yanomami, aconselha-se apenas uma contextualização prévia quanto aos problemas enfrentados pelo grupo, até para melhor compreensão do que se desenovela na tela grande.


Complete a experiência

O Cinema no Escurinho sugere a leitura do livro homônimo de Kopenawa e Bruce Albert, bem como a de "O Desejo dos Outros: Uma etnografia dos sonhos yanomami", da antropóloga Hanna Limulja. 

Do mesmo modo, assistir ao documentário Amazônia, a Nova Minamata?" (2022), de Jorge Bodanzky, disponível para compra ou aluguel no YouTube. Há, ainda, outras três iniciativas audiovisuais com Kopenawa:  "A Última Floresta", "Kopenawa: Sonhar a Terra-Floresta" e "Watoriki - Conversa com Davi Kopenawa". 

*Em tempo: "A Queda do Céu" insere trechos de "Os Bandeirantes" (1940), de Humberto Mauro, e de "La Nature" (2020), do documentarista e teórico armeno Artavazd Pelechian. 


Ficha técnica:
Direção e Roteiro: Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha
Produção: Aruac Filmes, coprodução Hutukara Associação Yanomami, Stemal Entertainment com Rai Cinema e produção associada francesa de Les Films d'ici
Distribuição: Gullane+
Exibição: nos cinemas
Duração: 1h48
Classificação: Livre
Países: Brasil, Itália e França
Gênero: documentário