09 agosto 2025

“Grades Invisíveis - Ela Ainda Está Aqui” junta lenda urbana e pauta feminista


Curta com direção de Sérgio Cunha e produção de Flávia Flores se apoia na história
da “Loira do Bonfim” (Fotos: Reprodução/Youtube)
 
 

Eduardo Jr.


Uma lenda urbana, conhecida por boa parte dos moradores de Belo Horizonte, agora encontra representação no curta-metragem “Grades Invisíveis - Ela Ainda Está Aqui”, que estreou no Youtube.

Feito a quatro mãos, com direção do jornalista e escritor Sérgio Cunha, e produção de Flávia Flores, o filme se apoia na história da “Loira do Bonfim”, personagem do além que perambula pela cidade. E mistura esse enredo à violência de gênero contra mulheres.

A experiência é rápida. O curta tem três minutos de duração e é filmado com um celular, na vertical (formato típico para o consumo ágil das redes sociais).

Na tela, o espectador é levado a entender que a protagonista solicitou uma corrida por carro de aplicativo e tentou levar o motorista para seus domínios, o Cemitério do Bonfim, na capital mineira. Prática atribuída à mulher que alguns belo-horizontinos juram ser real.


"Fazer cinema"

A narração amarra duas histórias que, até então, estavam posicionadas em pontos diferentes da sabedoria popular: de um lado, a lenda da década de 1940 da noiva abandonada no altar, que morreu de desgosto e que, há décadas, perambula por Belo Horizonte seduzindo homens para vingar suas dores.

Do outro, o histórico de silenciamento e violências contra mulheres, que se perpetua há séculos. No entanto, o esforço dos realizadores de ‘fazer cinema’ se enfraquece na tela. Enquanto o discurso tenta sustentar a obra, as imagens perdem a oportunidade de se aproximar da lenda da noiva vingativa.

O apelo à memória coletiva da Loira do Bonfim é uma estratégia interessante de atrair o público. No entanto, características que habitam esse imaginário não se apresentam. Quem deseja ver o figurino branco da personagem abandonada no altar, passará, sim, em brancas nuvens.


Ela nunca foi embora

A analogia entre a história trágica da mulher abandonada, vítima de irresponsabilidade afetiva, e o cenário frequente de mulheres afetadas por violência psicológica e física tenta criar a ideia de que situações semelhantes à da Loira se repetem.

Com isso, se produzem novas vítimas - que também poderiam desejar uma resposta seja ela justiça ou vingança. Ou seja, A Loira nunca foi embora, pois não falta motivação para que outras “Loiras do Bonfim” se mantenham presentes na sociedade.

Mas isso fica só nas camadas inferiores do curta. Porque, na tela, a presença dessa mulher não tem lá muita força. A quase-ausência da noiva vingativa tenta conferir uma aura sobrenatural à personagem ali retratada - e a mulher do além, obviamente, não faz questão de ser amplamente vista.


Questões técnicas

Em suma, a entrega deste produto audiovisual é um ato de coragem. Duas pessoas realizando uma obra de resgate (ou manutenção) da crendice popular é um feito interessante. No entanto, a execução não entrega nada que salte aos olhos - nem pelo encanto, nem para o susto do sobrenatural.

A edição com ar de experimental, a precariedade do som e a música cujos cortes chamam mais atenção do que a trama são questões técnicas que pesam. Se a memória da Loira do Bonfim promete durar ainda muito tempo, o curta não parece que terá a mesma sorte.



Ficha técnica:
Direção:
Sérgio Cunha
Roteiro: Sérgio Cunha, Flávia Flores
Produção: Flávia Flores
Câmera: Flávia Flores, Sérgio Cunha
Edição: Flávia Flores
Duração: 3'19”
País: Brasil

08 agosto 2025

"A Prisioneira de Bordeaux" - O florescer de uma amizade de matizes inusitados

Hafsia Herzi e Isabelle Huppert protagonizam o instigante longa francês dirigido por Patrícia Mazuy
(Fotos: Autoral Filmes)
 
 

Patrícia Cassese

 
Logo nos primeiros momentos de "A Prisioneira de Bordeaux" ("La Prisionnière de Bordeaux"), filme da diretora e roteirista francesa Patrícia Mazuy em cartaz no Cine Una Belas Artes, os acontecimentos vistos em tela suscitam um ponto de interrogação na mente do espectador. 

Numa penitenciária, vemos o encontro fortuito de duas mulheres de classes sociais distintas, que, no entanto, estão ali pelo mesmo motivo: visitar os maridos. Mas se são eles, os cônjuges, a estarem ali, encarcerados, por que o título cita "a prisioneira" - ou seja, no feminino e no singular? 

A resposta só poderá ser obtida mais ao final da trama que, embora parecesse até dispensável pontuar, por estar evidente no nome da obra, se passa na cidade localizada a sudoeste da França.  


Unidas pelo crime alheio

As duas personagens são vividas por Isabelle Huppert e Hafsia Herzi. A primeira encarna Alma Lund, uma mulher rica que, desde a prisão do parceiro, Christopher Lund (Magne Brekke), vive sozinha em uma casa recheada de obras de arte e memórias. O marido, diga-se, foi condenado após uma tragédia no trânsito. 

Já a franco-tunisiana Hafsia Herzi dá vida a Mina Hirti, cujo companheiro Nasser (Lionel Dray), por seu turno, cumpre pena por um assalto sucedido por um confronto com a polícia que resultou na morte de seu comparsa. 

Com dois filhos pequenos, ela tenta se desdobrar para dar conta de sustentá-los, driblando também os preconceitos que recaem sobre pessoas de ascendência árabe na Europa. 


O encontro das duas se dá logo nas cenas iniciais, quando, ao se dar conta de que errou o dia da visita (estava, na verdade, agendada para o seguinte), Mina ensaia passar mal para tentar comover os funcionários da prisão de modo a deixá-la entrar. Assim, evitaria uma viagem em vão - mesmo porque, trata-se de um percurso longo, já que não mora nas cercanias.  

Porém, a encenação de um desmaio, pífia que só, só faz despertar o olhar condoído de Alma, que, na sequência, vê Mina dormindo no banco da parada de ônibus e para o carro. A reação de Alma soa inusitada quando pensamos no mundo atual, em que desconfiamos das nossas próprias sombras e fugimos do contato com estranhos. 


Amizade pouco crível

No entanto, inesperadamente ela convida Mina a passar a noite em sua casa (os filhos, pondera Alma, poderiam ficar sob os cuidados de alguma amiga), de modo a, no outro dia, ela não ter que enfrentar o desgastante deslocamento para, enfim, ver o marido. 

Após hesitar, Alma assente e, daí, nasce uma amizade que, na vida real, nas condições colocadas na história, parece pouco, pouquíssimo crível. Não tarda e Mina propõe a Alma que se mude de vez para sua casa, levando também os filhos.

Com a presença dos três em casa, o cotidiano de Alma adquire cores. Em vez do silêncio vigente, a algazarra dos meninos, a quem Alma também acompanha na escola e com quem brinca. Radiante, a milionária trata de garantir um emprego para Mina na empresa do marido. 


Tudo caminharia para uma convivência pacífica de uma nova configuração familiar não fosse a presença de Yacine (William Edimo), irmão do companheiro de Nasser morto no citado roubo.

Yacine empareda Mina e cobra dela uma posição quanto à localização de relógios que teriam sido obtidos por meio do assalto, mas que, com a prisão de Nasser, desapareceram, e com os quais ele poderia ganhar muito dinheiro. Acuada, Mina trama uma solução para se ver livre desse fantasma e poder seguir em frente.

O que se dá a partir daí fica reservado para quem for assistir ao filme. No entanto, cumpre analisar que, no material enviado pela assessoria de imprensa da distribuidora do filme, uma frase da diretora lembra que a amizade entre as duas personagens centrais foi desde o início pensado como o pilar da narrativa. "Mina defende Alma quando as mulheres na sala de visitas querem silenciá-la. Alma convida Mina para sua casa.


Relações construídas sob regras

Conduzido com delicadeza e, ao mesmo tempo, tensão, "A Prisioneira de Bordeaux" entra em cena no Brasil com um potencial enorme de atingir profundamente o público feminino. 

E isso, não apenas por abordar a amizade entre duas mulheres de classes sociais bem distintas, mas, principalmente, por questionar a validade de algumas relações construídas sob regras de uma sociedade hoje em desconstrução. 

Regras as quais muitos insistem em seguir por razões como o comodismo (mesmo inconsciente) e o receio justificável que atrela-se ao ensejo de grandes mudanças.

Não menos importante, a cena em que os amigos de Alma se dão conta da presença de Mina na casa, o que dá vez a uma série de comentários que demarcam bem o preconceito estrutural que paira sobre os imigrantes.

Vale reparar, ainda, na bela música que toca ao final, "Je Sens tu Mens", de Amine Bouhafa e Sarah McCoy, e que foi composta para o filme de Mazuy. 


Ficha técnica:
Direção: Patrícia Mazuy
Produção: Rectangle Productions, Picseyes, coprodução ARTE France Cinéma
Distribuição: Autoral Filmes
Exibição: Cine Una Belas Artes
Duração: 1h48
Classificação: 14 anos
País: França
Gêneros: drama, ficção