30 outubro 2025

"A Memória do Cheiro das Coisas" tenta ser poético enquanto aborda velhice, perdão e (o próprio) racismo

Longa português dirigido por António Ferreira tem José Martins e Mina Andala entregando ótimas interpretações (Fotos: Bretz Filmes)
 
 

Eduardo Jr.

 
A velhice é sempre digna de nossa piedade? O passado, por ser passado, merece perdão? Essas são questões que podem surgir do contato com o longa português “A Memória do Cheiro das Coisas”, que estreia nesta quinta-feira, no Centro Cultural Unimed-BH Minas.

Dirigido por António Ferreira, coproduzido pela brasileira Muiraquitã Filmes e distribuído pela Bretz Flmes, o longa tenta aplicar uma aura poética ao abordar velhice, passado, preconceito e memória. 


O ator José Martins dá vida ao Sr. Arménio, um octogenário que é levado pelo filho para morar em um lar de idosos. A você, que me lê e pode sentir pena do protagonista deixado no asilo, já aviso: dificilmente você conseguirá gostar dele. 

Nos primeiros segundos Arménio já exibe seu lado rude. E daí em diante o espectador vai conhecendo o passado e a personalidade daquele homem, ex-combatente da Guerra Colonial Portuguesa, em Angola. Mas a guerra continua com ele, na memória e nos cheiros que remetem a experiências do passado. 


Ele também carrega consigo o preconceito racial, que fica evidente quando seu cuidador no asilo deixa o trabalho e no lugar dele chega Hermínia, mulher negra a quem ele assedia e ofende. A personagem, vivida por Mina Andala, tem a chance de desconectar Arménio das ideias racistas. A direção, no entanto, revela que não sabe reconhecer e representar igualdade. 

No filme, a cuidadora até se defende das violências. Chega a dar pistas de que será o elemento capaz de oferecer alguma dignidade a quem atacou a dignidade dos africanos. Mas seu discurso é o de que, embora negra, é cidadã portuguesa e que seu pai também lutou na guerra. Parece precisar convencer que é uma pessoa digna de ser aceita pelo homem branco.  


Já em outros aspectos, como a tentativa de expressar uma velhice que parece acorrentar Arménio à margem do mundo, a obra obtém resultados melhores. Se o tempo passou, dificultando alguns atos do cotidiano e exigindo dele paciência, também vai cobrar isso do espectador, em cenas lentas, em que a câmera mal se move. 

Nos corredores apertados e ora escuros do lar para idosos é possível experimentar uma claustrofobia. A sensação é acentuada pela ausência de janelas abertas. Para ver uma passeata ou o cachorro que gosta o velho ex-combatente de guerra não pode fazer mais do que lançar seu olhar através da vidraça que o separa da vida pulsante. 


Resta a Arménio enfrentar seus fantasmas do passado. E ao espectador, se incomodar com a postura da direção, que aplica em um relato do passado do idoso a tentativa de fazer dele uma vítima, mesmo ele já tendo confessado os horrores praticados em nome de seu país. 

Observando mais atentamente as camadas do roteiro, a velhice pintada com as tintas do abandono, do constrangimento e do trauma parece uma merecida vingança. 

Em resumo, esta pode ser considerada uma obra de naturalizar preconceitos que se apresenta vestida de véu poético. Como aquele já conhecido patriotismo, que acredita serem válidas as piores das vilanias.


Ficha técnica:
Direção:
António Ferreira
Produção: Persona Non Grata Pictures, coprodução da brasileira Muiraquitã Filmes
Distribuição: Bretz Flmes
Exibição: Centro Cultural Unimed-BH Minas - sala 2
Duração: 1h40
Classificação: 14 anos
País: Portugal, Brasil
Gênero: drama

29 outubro 2025

Sufocante, "Novembro" revisita o ataque sanguinário ao tribunal colombiano

Nathália Reyes interpreta personagem inspirada em Clara Helena Enciso, única sobrevivente do grupo guerrilheiro M-19 (Foto: Divulgação/Vulcana Cinema)s
 
 

Silvana Monteiro

 
“Novembro”, longa-metragem dirigido e roteirizado por Tomás Corredor, mergulha na dolorosa história recente da Colômbia ao revisitar um de seus episódios mais sombrios: o cerco ao Palácio da Justiça, ocorrido em Bogotá, em novembro de 1985. 

A obra reconstrói, com intensidade e fusão internarrativa, a invasão do grupo guerrilheiro M-19 ao edifício da Suprema Corte. A resposta militar desencadeou um confronto devastador, que destruiu paredes e provocou dezenas de perdas humanas.


O filme entrelaça imagens de arquivo e cenas gravadas em locações no México, recriando o ambiente interno, opressivo e aterrorizante vivido por 35 reféns, entre guerrilheiros, juízes e civis, por mais de 27 horas no interior de um banheiro da corte judicial, naquele 6 de novembro. 

A fotografia aposta em tons densos e em uma luz rarefeita: há pouco ar, há muito suor, tensão, gente tentando sobreviver ao caos de uma invasão, choro e diálogos violentos. 

Esses elementos narrativos constroem uma atmosfera de asfixia, espelhando o medo e o desespero compartilhados por guerrilheiros, reféns e militares.


Com atuações de Natalia Reyes (também produtora executiva do filme), Santiago Alarcón, Juan Prada e Max Durán, "Novembro" é uma coprodução internacional da colombiana Burning, da mexicana Piano, da norueguesa Tordenfilm, e coprodução internacional com a produtora brasileira Vulcana Cinema. 

O longa, que chega nesta quinta-feira (30) aos cinemas brasileiros, teve estreia mundial, em setembro, na Discovery Section do 50º Festival Internacional de Cinema de Toronto (TIFF) e foi selecionado para a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.


Destaque mais que merecido para Reyes que interpreta Clara Helena, "La Mona", uma personagem inspirada em Clara Helena Enciso, a única sobrevivente do grupo guerrilheiro M-19. Justamente por isso é perceptível sua ótica na história. 

A atuação de Santiago Alárcon no papel do magistrado Manuel Gaona Crus, também é outro ponto forte da obra. 

A narrativa que se estende em alguns trechos que poderiam ser mais dinâmicos, no entanto, enfraquece a trama. Ainda assim, no conjunto, trata-se de uma excelente opção para quem aprecia docudramas, filmes de guerrilha e produções de caráter sociopolítico. 

Especialmente no momento que estamos vivendo com a situação de caos e mortes no Rio de Janeiro após a megaoperação contra o narcotráfico. 


Ficha técnica:
Direção e roteiro: Tomás Corredor
Produção: Burning, Piano, Vulcana Cinema, Tordenfilm
Distribuição: Vulcana Cinema
Exibição: nos cinemas
Duração: 1h18
Classificação: 14 anos
Países: Colômbia, Brasil, Noruega e México
Gênero: drama histórico