Mostrando postagens com marcador #MuiraquitãFilmes. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador #MuiraquitãFilmes. Mostrar todas as postagens

08 abril 2022

"Mar de Dentro" mostra a maternidade nada edulcorada

Mônica Iozzi interpreta a personagem principal que vive a situação de uma gravidez não planejada (Fotos: California Filmes/Divulgação)


Patrícia Nunes Coelho


Logo na primeira parte do filme, Manu (Mônica Iozzi) comenta com o namorado, Beto (Rafael Losso), o motivo de não nutrir muito apreço pelo mar: em sua infância, ela viveu um episódio que lhe deixou traumas profundos. Provavelmente daí o título do longa - "Mar de Dentro" - dirigido por Dainara Toffoli (nome por trás da excelente série "Manhãs de Setembro", da Amazon Prime Vídeo) e distribuído pela Califórnia Filmes. 

O mar que a personagem de Iozzi vai ter que enfrentar não é o real, mas igualmente assustador. Mas antes de seguir em frente, um parênteses. O filme, que estreia em breve em BH, (embora já tenha sido exibido em festivais, como a 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema) parte de uma situação muito particular (a perda do parceiro em plena gestação) para falar da maternidade sem o viés do romantismo que muitas vezes está atrelado ao tema. 



É fato: ainda hoje, apesar da vasta bibliografia sobre o tema - nomes como Brooke Shields já escreveram sobre o outro lado da maternidade -, muitos ainda edulcoram essa dita missão atribuída às mulheres. No caso, além da perda, Manu tem que lidar com uma série de situações inesperadas - lembrando que a gravidez não foi planejada. 


Quem já viveu a maternidade por meio de lentes reais certamente vai se identificar com as situações mostradas: problemas na gravidez que exigem o afastamento do trabalho, o medo de outro profissional se sobressair neste período e tomar o seu lugar, o parto nada idílico, o corpo que não se recupera, o pouco tempo para se preocupar com a aparência, o leite que empedra, as intromissões indesejadas daqueles que acreditam ter resposta para tudo, como fica o desejo sexual... Até a volta ao trabalho é abordada na obra, em um veio bem realístico: no retorno, muita coisa mudou. É certeiro.


No caso, no filme, como já dito, Manu vive um luto. Não tivesse ocorrido a morte súbita, provavelmente o parceiro, entusiasmado que estava em ser pai, lhe daria total amparo, mesmo que a relação a dois não vingasse. 

Com a perda dele, ela até tem uma rede de apoio, ainda que tímida, formada pela irmã e, mais tarde, por duas profissionais contratadas (uma delas, também mãe de uma criança pequena). Mas basta ter os olhos abertos ao mundo para saber que não poucas mulheres no país enfrentam a maternidade solo em condições ainda piores. Muito, muito piores. 


Em uma entrevista concedida ao canal Cine Resenhas, no bojo do lançamento, Mônica Iozzi lembrou que o filme se alinha a outras produções recentes, como "A Filha Perdida", de Maggie Gyllenhaal, baseada na obra homônima de Elena Ferrante, e de "Mães Paralelas", de Pedro Almodóvar. Fato, o tema está pulsante, e ele também começa a ser abordado na terceira temporada de "My Brilliant Friend" (HBO Max), em curso, apenas para citar mais um exemplo.


Além do roteiro, um ponto muito positivo para "Mar de Dentro" é a interpretação de Monica Iozzi, que se dá na justa medida. A atriz, que já se desvinculou totalmente de seu período "CQC" (e olha que, à época, algumas pessoas julgaram temerária a sua decisão de deixar o programa), consegue imprimir veracidade à personagem expressando, por meio de gestos sutis e de olhares profundos, a dor, as incertezas e angústia de Manu. 


O elenco de apoio também merece loas, com nomes de primeira linha, como ZeCarlos Machado, Magali Biff, Gilda Nomacce (da série "TodXs" ou Fabiana Gugli (atriz preferida de Gerald Thomas), dando perfeitamente o seu recado mesmo em papéis, entre aspas, "menores". 

Difícil saber se a produção vai agradar em cheio ao público masculino - aos que tentam exercer a empatia a este momento tão único da vida da mulher, certamente, sim. Mas, ao expressar a vida nada edulcorada da mãe solo, não há dúvidas que fala também por um contingente cada vez menos invisível no cinema.


Ficha técnica:
Direção: Dainara Toffoli
Produção: Elástica Filmes e Muiraquitã Filmes
Distribuição: Califórnia Filmes
Exibição: em breve nos cinemas de BH
Duração: 1h30
Classificação: 14 anos
País: Brasil
Gênero: drama

02 junho 2021

“Cine Marrocos”: quando a decadência pode virar esperança e arte

Bonito e melancólico, documentário prende a atenção do espectador até o final (Fotos: Loiro Cunha/Divulgação)

Mirtes Helena Scalioni


A princípio, é preciso dizer que Ricardo Calil, que roteirizou e dirigiu o documentário “Cine Marrocos”, teve uma sacada genial: transformar – ou tentar transformar – um grupo de sem-teto em atores e atrizes, talvez fazendo-os viver, por momentos, como reis, rainhas, milionários, saltimbancos, divas e vilões e, a partir daí, compreenderem suas próprias vidas. 

O filme, que estreia nesta quinta-feira (03/06) nos cinemas, é mais do que isso quando se sabe que essas pessoas eram invasores e ocupavam, há algum tempo, o charmoso e chique cinema Marrocos, ícone das artes nos anos de 1950 no centro de São Paulo e que completou 70 anos em janeiro último.


Quem acompanhou o noticiário da época vai se lembrar da rumorosa invasão do Cine Marrocos, em 2013, por mais de dois mil sem-teto de 17 países, moradores de rua, imigrantes, refugiados e toda sorte de gente que, de alguma forma, perdeu o vínculo com a família ou com a vida. De latino-americanos a africanos, de franceses a nordestinos, cada um tem sua história para contar e é essa diversidade que enriquece o filme. 

Capitaneada por um líder do MSTS - Movimento dos Sem-Teto de São Paulo - essa turma viveu ali entre cadeiras quebradas, pedaços de filme, tapetes rasgados, refletores e velhos projetores até 2016, quando a prefeitura da capital ganhou a reintegração de posse na Justiça.


Talvez para juntar o real com a ficção, Ricardo Calil tratou de organizar uma espécie de oficina de artes cênicas entre os moradores, levando-os a interpretar partes de filmes que foram sucesso naquele velho cinema. O Cine Marrocos chegou a ser o melhor e mais luxuoso da América Latina e o primeiro a sediar o festival internacional de cinema do Brasil, com a participação de astros famosos de Hollywood. Diferentemente do que sempre acontece, esse cinema não virou igreja sabe-se lá por quê. 


Com a ajuda de dois preparadores de elenco – Ivo Müller e Georgina Castro – o diretor ensinou, ensaiou, repetiu e filmou aquelas pessoas em cenas de filmes como “Crepúsculo dos Deuses”, de Billy Wilder; “A Grande Ilusão”, de Jean Renoir; “Noites de Circo”, de Ingmar Bergman; “Júlio César”, de Joseph L. Mankiewicz e “Pão, Amor e Fantasia”, de Luigi Comencini.

E é assim, entre depoimentos dos moradores contando suas próprias histórias e insistentes ensaios e filmagens, que transcorrem os pouco mais de 70 minutos de “Cine Marrocos”, que vai, devagar, ganhando humanidade. 


Os motivos que levaram aquelas pessoas até aquele lugar são tão tristes quanto diversos. Na edição do longa, a ligação entre os depoimentos parece ser feita pelo líder do MSTS, que faz tudo o possível para convencer que tudo naquele lugar transcorre às mil maravilhas, onde tudo funciona, todos se comportam bem e a organização é nota 10. Ele é também o responsável pela arrecadação do dinheiro dos moradores para, segundo diz, manter o local habitável e pagar o advogado na intensa batalha judicial travada com a prefeitura de São Paulo.


Por mérito da direção, o documentário prende a atenção do espectador até o final, bonito e melancólico, mesmo que, às vezes, se torne um pouco arrastado. Parênteses para dizer que quem não é cinéfilo de carteirinha não consegue identificar todos os clássicos do cinema citados no longa sem uma colada no Google. Talvez fosse mais prático ter colocado, na tela, o nome dos filmes, seus diretores e épocas em que foram exibidos. Soltos, sem identificação e aos pedaços, essas obras-primas acabam perdendo um pouco o valor. 


Outra ressalva: faltou contextualizar datas. O público pode não se lembrar de quando foi que a ocupação do cinema aconteceu e quanto tempo ela durou. Mais uma vez, quem se interessar em saber, tem que recorrer ao Google. 

O longa venceu a Mostra É Tudo Verdade em 2019. Também foi premiado com o Golden Dove na categoria Next Master no DOK Leipzig, festival de documentários mais antigo do mundo, na Alemanha, em 2018; Melhor Documentário no FICG - Festival Internacional de Cinema de Guadalajara, no México, em 2019; e selecionado para o Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano, em Havana, e o DocAviv – Festival Internacional de Documentários de Tel Aviv, em Israel, em 2019.   


Ficha técnica:
Direção e roteiro: Ricardo Calil
Produção: Muiraquitã Filmes / Olha Só / Globo Filmes / GloboNews / Canal Brasil
Distribuição: Bretz Filmes
Exibição: nos cinemas
Duração: 1h16
Classificação: 12 anos
País: Brasil
Gênero: Documentário