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02 junho 2021

“Cine Marrocos”: quando a decadência pode virar esperança e arte

Bonito e melancólico, documentário prende a atenção do espectador até o final (Fotos: Loiro Cunha/Divulgação)

Mirtes Helena Scalioni


A princípio, é preciso dizer que Ricardo Calil, que roteirizou e dirigiu o documentário “Cine Marrocos”, teve uma sacada genial: transformar – ou tentar transformar – um grupo de sem-teto em atores e atrizes, talvez fazendo-os viver, por momentos, como reis, rainhas, milionários, saltimbancos, divas e vilões e, a partir daí, compreenderem suas próprias vidas. 

O filme, que estreia nesta quinta-feira (03/06) nos cinemas, é mais do que isso quando se sabe que essas pessoas eram invasores e ocupavam, há algum tempo, o charmoso e chique cinema Marrocos, ícone das artes nos anos de 1950 no centro de São Paulo e que completou 70 anos em janeiro último.


Quem acompanhou o noticiário da época vai se lembrar da rumorosa invasão do Cine Marrocos, em 2013, por mais de dois mil sem-teto de 17 países, moradores de rua, imigrantes, refugiados e toda sorte de gente que, de alguma forma, perdeu o vínculo com a família ou com a vida. De latino-americanos a africanos, de franceses a nordestinos, cada um tem sua história para contar e é essa diversidade que enriquece o filme. 

Capitaneada por um líder do MSTS - Movimento dos Sem-Teto de São Paulo - essa turma viveu ali entre cadeiras quebradas, pedaços de filme, tapetes rasgados, refletores e velhos projetores até 2016, quando a prefeitura da capital ganhou a reintegração de posse na Justiça.


Talvez para juntar o real com a ficção, Ricardo Calil tratou de organizar uma espécie de oficina de artes cênicas entre os moradores, levando-os a interpretar partes de filmes que foram sucesso naquele velho cinema. O Cine Marrocos chegou a ser o melhor e mais luxuoso da América Latina e o primeiro a sediar o festival internacional de cinema do Brasil, com a participação de astros famosos de Hollywood. Diferentemente do que sempre acontece, esse cinema não virou igreja sabe-se lá por quê. 


Com a ajuda de dois preparadores de elenco – Ivo Müller e Georgina Castro – o diretor ensinou, ensaiou, repetiu e filmou aquelas pessoas em cenas de filmes como “Crepúsculo dos Deuses”, de Billy Wilder; “A Grande Ilusão”, de Jean Renoir; “Noites de Circo”, de Ingmar Bergman; “Júlio César”, de Joseph L. Mankiewicz e “Pão, Amor e Fantasia”, de Luigi Comencini.

E é assim, entre depoimentos dos moradores contando suas próprias histórias e insistentes ensaios e filmagens, que transcorrem os pouco mais de 70 minutos de “Cine Marrocos”, que vai, devagar, ganhando humanidade. 


Os motivos que levaram aquelas pessoas até aquele lugar são tão tristes quanto diversos. Na edição do longa, a ligação entre os depoimentos parece ser feita pelo líder do MSTS, que faz tudo o possível para convencer que tudo naquele lugar transcorre às mil maravilhas, onde tudo funciona, todos se comportam bem e a organização é nota 10. Ele é também o responsável pela arrecadação do dinheiro dos moradores para, segundo diz, manter o local habitável e pagar o advogado na intensa batalha judicial travada com a prefeitura de São Paulo.


Por mérito da direção, o documentário prende a atenção do espectador até o final, bonito e melancólico, mesmo que, às vezes, se torne um pouco arrastado. Parênteses para dizer que quem não é cinéfilo de carteirinha não consegue identificar todos os clássicos do cinema citados no longa sem uma colada no Google. Talvez fosse mais prático ter colocado, na tela, o nome dos filmes, seus diretores e épocas em que foram exibidos. Soltos, sem identificação e aos pedaços, essas obras-primas acabam perdendo um pouco o valor. 


Outra ressalva: faltou contextualizar datas. O público pode não se lembrar de quando foi que a ocupação do cinema aconteceu e quanto tempo ela durou. Mais uma vez, quem se interessar em saber, tem que recorrer ao Google. 

O longa venceu a Mostra É Tudo Verdade em 2019. Também foi premiado com o Golden Dove na categoria Next Master no DOK Leipzig, festival de documentários mais antigo do mundo, na Alemanha, em 2018; Melhor Documentário no FICG - Festival Internacional de Cinema de Guadalajara, no México, em 2019; e selecionado para o Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano, em Havana, e o DocAviv – Festival Internacional de Documentários de Tel Aviv, em Israel, em 2019.   


Ficha técnica:
Direção e roteiro: Ricardo Calil
Produção: Muiraquitã Filmes / Olha Só / Globo Filmes / GloboNews / Canal Brasil
Distribuição: Bretz Filmes
Exibição: nos cinemas
Duração: 1h16
Classificação: 12 anos
País: Brasil
Gênero: Documentário