17 novembro 2025

Impactante e necessário, "A Queda do Céu" finalmente entra em circuito no Brasil

Documentário aborda o alerta dos Yanomamis sobre os riscos climáticos que poderão afetar todo o planeta (Fotos: Gullane+)
 
 

Patrícia Cassese
Correspondente em Cannes

 
Em um período longínquo da história da Terra, o céu "caiu". A questão é que o evento pode se repetir - na verdade, para os Yanomamis, não há dúvida quanto a isso. Na primeira vez, os espíritos Xapiri conseguiram sustentar o firmamento. A grande dúvida é se, com a ameaça inclemente aos povos indígenas, e ao planeta como um todo, será possível repetir o feito.

Não por outro motivo, os xamãs Yanomamis alertam: nem aqueles que amealharam fortunas serão capazes de silenciar o vento da tempestade. O cataclisma será um tempo de lamentos. 

Essa profecia ocupa os primeiros minutos de "A Queda do Céu" (108'), documentário que teve première mundial na Quinzena dos Realizadores da edição 2024 do Festival de Cannes - que, aliás, o Cinema no Escurinho teve a oportunidade de acompanhar - e que agora entra em circuito nacional, com distribuição da Gullane+. Na Itália, o lançamento comercial também ocorre este mês.


A trajetória da produção

O longa é baseado no livro homônimo (Companhia das Letras, 768 páginas), escrito pelo xamã Yanomami Davi Kopenawa e pelo antropólogo francês Bruce Albert, lançado no Brasil em 2015 (na França, em 2010). Na transposição para a telona, a direção é assinada por Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha. 

Desde Cannes, a produção participou de 80 festivais no Brasil e no mundo, tendo arrebanhado mais de 20 prêmios nacionais e internacionais neste percurso. 

Entre as láureas, estão o Grande Prêmio do Júri da Competição Kaleidoscope do festival DOC NYC (maior festival de documentários dos EUA); o Prêmio Especial do Júri da Competição Internacional no DMZ Docs 2024 (Coreia do Sul); melhor Longa Documentário Internacional no 27º Festival de Guanajuato GIFF 2024  (México); Prêmio Fundação INATEL no DocLisboa 2024 (Portugal) e o Prêmio Principal Fethi Kayaalp no Festival de Documentários Ecológicos de Bozcaada 2025 (Turquia).

Exibição do filme no Festival de Cannes
(Foto: Patrícia Cassese)

No Brasil, levou para casa o prêmio de Som e Direção de Documentário no Festival do Rio e o Prêmio ABC 2025 nas categorias Direção de Fotografia, Montagem e Som, para citar exemplos. No dia 13 de novembro, a “A Queda do Céu” teve uma exibição especial na 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, com a presença de Kopenawa e de Eryk Rocha. 

A COP 30, você sabe, é tida como o principal fórum global visando a negociação de medidas de combate ao aquecimento do planeta, e reúne representantes de dezenas de países. A sessão teve lugar no Instituto Ciência de Arte, edifício histórico na Praça da República, por meio da 10ª Mostra de Cinema da Amazônia, em parceria com o Observatório do Clima. 


O ritual Reahu

Apresentações feitas, voltemos ao longa, que acompanha a comunidade de Watorikɨ, uma das aldeias Yanomami no Amazonas. Precisamente, às vésperas da realização do Reahu, ritual que marca a despedida final da alma de um falecido, bem como o encerramento do período de luto da comunidade.
 
No caso específico, a despedida concerne ao sogro de Kopenawa. A narrativa descreve práticas adotadas pelos Yanomami, como o apagamento de vestígios do falecido, o que se dá, por exemplo, com a queima de objetos pessoais (rede, adornos, flecha), bem como com as plantações por ele feitas. 

No desenrolar dos preparativos para o Reahu, como o preparo do mingau de banana, Kopenawa, bem como outros expoentes de Watoriki, compartilham reflexões e as ameaças que recaem sobre os yanomamis, principalmente no que tange ao avanço do garimpo ("que contaminam rios e os deixam turvos") e do interesse predador de madeireiros. 


Em dado momento, por meio do rádio transmissor, Kopenawa é avisado pela comunidade Koroas quanto à aproximação de uma leva de garimpeiros, e aconselha o interlocutar a tentar manter a calma possível, mediante a manifestação da vontade, por parte desse, de flechá-los. Os "estrangeiros", ou "inimigos", são chamados pelos Yanomami de "napës".

Invasão dos garimpeiros

Um parêntesis é feito no filme para falar sobre o início da invasão dos garimpeiros, que se deu com a construção da Perimetral Norte, nos primeiros anos de 1970. Neste período, a floresta e os povos indígenas assistiram, estupefatos, à chegada de tratores, motoserras, explosões com dinamite etc. "Cortaram florestas como se corta carne", aponta uma fala do filme. 

Além do maquinário, os napës trouxeram doenças. "Morreram velhos, adultos, moças, crianças...", enumera o filme. A busca pelo ouro, prata e outros metais, como a cassiterita, contam, culmina com a destruição de rios e do verde. Não bastasse, há, por parte das mulheres, o temor (justificado) do estupro. 


No entanto, no filme, os Yanomamis lembram que piores de que os próprios garimpeiros são aqueles que estão por trás dos "operários" aos quais a ação de destruição propriamente dita é delegada. 

Sonhos e espíritos

A questão dos sonhos é também abordada no documentário. "No sonho, tudo se esclarece", afiançam os Yanomamis. Principalmente quando o sonho se dá pelo poder do pó de yãkoana (ou yakoana), substância alucinógena de origem vegetal extraída da árvore de mesmo nome. Como pontua o longa, quando inalam o yãkoana, "os olhos morrem para enxergar os espíritos xapiri". 

Os espíritos xapiri são os donos da floresta, resistentes como as rochas. No Brasil, estima-se que existam, hoje, cerca de 31 mil Yanomamis. Com os que estão em território venezuelano, 35 mil. São, pois, a última morada dos xapiris.  

Raciocínio lógico dedutivo: como os xapiris são aqueles capazes de segurar o céu, se os Yanomamis desaparecerem, o cataclisma será inevitável. Virão inundações, epidemias... Um estado de caos, que, no filme, é reforçado por imagens em P&B de destruição (*). O homem branco, preveem os yanomamis, vai, então, chorar "como criança".


O alerta Yanomami, transmitido por meio de Davi Kopenawa, se alinha a gritos afins emitidos por outros povos originários, como os Krenak. São avisos que também se coadunam aos de ambientalistas, bem como de cidadãos comuns, preocupados com as mudanças climáticas em curso no planeta. Habitantes originários daquela que é a maior floresta tropical do mundo, os Yanomami têm atávico lugar de fala - e, assim, precisam ser ouvidos.

No entanto, mais que ecoar a advertência sobre a destruição das florestas - e, consequentemente, a ameaça que paira sobre os povos indígenas -, "A Queda do Céu" se destaca por mostrar pormenores de crenças, rituais e pensamentos Yanomamis, principalmente a partir do ritual fúnebre citado, mas não só. Pinturas, adereços, práticas, a culinária... 

Tudo isso faz de "A Queda do Céu" uma experiência riquíssima e impactante. Ao espectador menos enfronhado nas questões do povo Yanomami, aconselha-se apenas uma contextualização prévia quanto aos problemas enfrentados pelo grupo, até para melhor compreensão do que se desenovela na tela grande.


Complete a experiência

O Cinema no Escurinho sugere a leitura do livro homônimo de Kopenawa e Bruce Albert, bem como a de "O Desejo dos Outros: Uma etnografia dos sonhos yanomami", da antropóloga Hanna Limulja. 

Do mesmo modo, assistir ao documentário Amazônia, a Nova Minamata?" (2022), de Jorge Bodanzky, disponível para compra ou aluguel no YouTube. Há, ainda, outras três iniciativas audiovisuais com Kopenawa:  "A Última Floresta", "Kopenawa: Sonhar a Terra-Floresta" e "Watoriki - Conversa com Davi Kopenawa". 

*Em tempo: "A Queda do Céu" insere trechos de "Os Bandeirantes" (1940), de Humberto Mauro, e de "La Nature" (2020), do documentarista e teórico armeno Artavazd Pelechian. 


Ficha técnica:
Direção e Roteiro: Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha
Produção: Aruac Filmes, coprodução Hutukara Associação Yanomami, Stemal Entertainment com Rai Cinema e produção associada francesa de Les Films d'ici
Distribuição: Gullane+
Exibição: nos cinemas
Duração: 1h48
Classificação: Livre
Países: Brasil, Itália e França
Gênero: documentário

13 novembro 2025

"Meu Pior Vizinho" - o inferno está do outro lado da parede

A fina folha que separa os apartamentos de Lee Ji-hoon e Lee Ji-hoon pode mudar suas vidas
(Fotos: Sato Company)
 
 

Silvana Monteiro


Em “Meu Pior Vizinho”, Lee Seung-jin (interpretado por Lee Ji-hoon) aluga um apartamento daqueles bem pequenos, colado, parede-parede com uma designer e artista plástica Han Seung-yeon (papel de Hong Ra-ni).

A questão é que ambos começam a se irritar com o barulho um do outro. Ele, como músico que precisa treinar para um teste musical e ela fazendo suas artes. A convivência vai ficando impossível até que um acontecimento os faz sair do controle. O que era inimizade vai virar amizade ou outra coisa? 


Com roteiro de Park So-hee, Lee Woo-chul e Kim Ho-jung, o filme revisita o original francês ("Blind Date", 2015) com o olhar próprio dos Kdramas.

O elenco é liderado por Lee Ji-hoon, estreando nas telonas após papéis de destaque em “River Where the Moon Rises” (2021) e “Rookie Historian Goo Hae-Ryung” (2019), e por Han Seung-yeon, ex-integrante do KARA, já conhecida por trabalhos como “Show Me the Ghost” (2021) e “Hello, My Twenties!” (2016). O excelente ator Ko Kyu-pil ("Twelve") completa o trio, no papel de Ku Ji-woo.


“Meu Pior Vizinho” tem uma fotografia sofisticada, talvez seu ponto mais forte, mas falta-lhe o pulso emocional que costuma mover boas comédias românticas. A obra até acena para temas como moradia, solidão, convivência e afeto, porém não os desenvolve com a profundidade que prometem.

O filme acaba escorregando no clichê dos doramas coreanos, repetindo a velha fórmula requentada: dois desconhecidos divididos por uma parede, irritação inicial, situações caóticas e, supostamente, um vínculo que deveria nascer daí. 


O problema é que não dá tempo para o envolvimento real do casal. As relações acontecem no automático, quase por convenção do gênero, e isso esvazia o impacto emocional — justamente o que se espera de uma história desse tipo.

No fim, sobra a estética: bonita, cuidada, às vezes até mais sensível do que o próprio roteiro. Falta, porém, a centelha que transforma uma narrativa previsível em algo capaz de tocar o público. Há charme, há intenção, mas há pouco risco. Nada de novo sob o sol. O resultado é um filme agradável de assistir, mas incapaz de deixar marcas.


Ficha técnica:
Direção:
Lee Woo-chul
Distribuição: Sato Company
Exibição: Cinemark Pátio Savassi
Duração: 1h52
Classificação: 14 anos
País: Coreia do Sul
Gêneros: romance, comédia