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19 setembro 2025

"Sr. Blake ao Seu Dispor": um filme-conforto sem contra-indicações

John Malkovich entrega charme e um bom francês ao dividir o protagonismo com a sempre bela e 
excelente Fanny Ardant (Fotos: Ricardo Vaz Palma/Bidibul Productions)
 
 

Patrícia Cassese

 
O argumento de "Sr. Blake ao seu Dispor" (no original, "Complètement Cramé!", algo como "completamente louco", em tradução livre), roteiro e direção do francês Gilles Legardinier, que está em cartaz no Una Cine Belas Artes, não é necessariamente novo.

Um estranho chega subitamente a uma localidade de tal modo imersa em sua rotina que nem mesmo os incômodos dela decorrentes são suficientes para provocar questionamentos em quem por ali habita. 

A introdução de um novo elemento na dinâmica daquele ecossistema, como de praxe, acaba por desencadear pequenos sismos, que, desse modo, paulatinamente movimentam as rígidas estruturas que sustentam o microuniverso.


O estranho, no caso, é Andrew Blake, um britânico interpretado por John Malkovich (norte-americano, frise-se), com sua elegância habitual - trata-se de sua estreia como protagonista de uma produção francesa.  

Já a localidade em foco é uma imponente mansão no interior da França - belíssima, mas, no momento, destituída dos recursos necessários para sua eficaz manutenção. 

A atual proprietária, Madame Beauvillier (vivida pelo ícone do cinema francês Fanny Ardant - detalhe: cada dia mais linda), pensa em voltar a receber hóspedes, de modo a amenizar os custos. 


Aliás, se hospedar ali é justamente o propósito de Andrew Blake, que deixa a vida na Inglaterra para rever o lugar no qual, décadas atrás, conheceu aquela que se tornou sua parceira de vida, Diane, falecida há quatro meses. 

Descrito assim, o filme pode sugerir, ao leitor, tratar-se apenas de um drama.  Mas não, a história inclusive abre espaço para o riso, ainda que o elemento humor, aqui, concentre-se mais nas tiradas sutis que saem da boca do personagem citado no título dado pela distribuidora brasileira. 

Detalhe: o original repete o do livro homônimo escrito pelo próprio Legardinier, lançado em 2012 e, desde então, traduzido para 17 idiomas.


Como dito, Blake chegou até a mansão no afã de reavivar as memórias do tempo em que conheceu aquela que foi a sua cara-metade, mãe de sua única filha. 

No entanto, uma pequena confusão se instala: é que, na verdade, a casa ainda não está aberta a receber hóspedes e, naquele momento de preparativos para tal, uma vaga para o posto de mordomo foi aberta. 

Com isso, Odile (Émilie Dequenne, ótima), cozinheira e governanta da casa, julga ser o Blake nada mais que um candidato à vaga, e, assim, o instala na ala dos empregados. 


Mesmo quando a confusão se desfaz entre os dois, Blake segue se passando por um aspirante a mordomo perante Madame Beauvillier, posto que só assim conseguiria permanecer por lá.

Nesta "encenação", claro, ele conta com a cumplicidade de Odile, personagem que, no curso do tempo, ergueu um muro em torno de si para se proteger do outro. Aliás, aos poucos, ela acaba revelando a Blake os motivos que a tornaram, assim, tão rígida quanto pouco permeável a estranhos. 

Um comportamento que inclusive a faz dar tudo de si no preparo das refeições do seu gato, Mephisto, mas, em contrapartida, se resumir ao trivial para os demais. 


A interação de Odile com Blake a faz rever comportamentos - e desanuvia suas feições. E o mesmo acontece com os demais personagens que compõem a trama, incluindo a jovem Manon (Eugénie Anselin), responsável pelos serviços gerais da casa, e que está grávida, tendo sido abandonada pelo parceiro e expulsa de casa pela mãe.

E Phillipe (Philippe Bas), o arisco caseiro, que prefere que seus interesses pessoais (como a construção de miniaturas de casas) não sejam do conhecimento das demais pessoas por ali.


Em meio aos acontecimentos provocados pela chegada de Blake, despontam também belas falas, como quando o personagem reflete que os arrependimentos por decisões que tomou no curso da vida, hoje, não o afetam tanto quanto o impacto diante da perda das pessoas que amava. 

O filme também aponta como o dar as mãos, diante de certas situações da existência, é um passo importante até mesmo para mudanças de ordem prática, como arrumar um quarto para a nova habitante da casa central ou um acesso mais inteligente para o gato adentrar a casa.


O fato de o diretor e roteirista (função dividida com Christel Henon) ser também o autor do livro adaptado, claro, garante a fidelidade ao conteúdo da obra e às reflexões - pertinentes - que coloca ao leitor/espectador. 

Um outro chamariz é observar Malkovich se esmerando no francês para fazer bonito - e, voilà, ele vence o desafio! Certo, algumas partes meio non sense (como o enfrentamento aos corretores que visam a venda da mansão) poderiam ser limadas. 

Mas, no frigir dos ovos, "Sr. Blake ao Seu Dispor" insere-se na categoria dos "filmes conforto", o que, em tempos tão bélicos, não é pouca coisa.


Ficha técnica:
Direção e roteiro:
Gilles Legardinier
Produção: Universal Pictures
Distribuição: Mares Filmes
Exibição: Una Cine Belas Artes - sala 1
Duração: 1h50
Classificação: 12 anos
Países: França, Luxemburgo
Gêneros: comédia, drama

13 janeiro 2025

Comovente, “A Semente do Fruto Sagrado” reflete sobre drama político e enclausuramento feminino

Em meio ao caos político do país, o patriarca impõe restrições severas à vida de sua família
(Fotos: Mares Filmes)


Carolina Cassese


Segundo o princípio dramático de Tchekhov, se um revólver aparece no começo de uma história, ele eventualmente será disparado. Em “A Semente do Fruto Sagrado” ("The Seed of the Sacred Fig"), do diretor iraniano Mohammad Rasoulof, o objeto – presente em uma das primeiras cenas – é central para o desenrolar da história. 

O filme está em cartaz no Cine Una Belas Artes e se encontra na shortlist para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro como representante da Alemanha.

Uma das discussões mais importantes da trama gira justamente em torno do revólver de Iman (Misagh Zare), personagem que trabalha como juiz de instrução para o governo. Como a arma de um funcionário tão importante pode ter desaparecido? 


O protagonista, então, passa a ficar bastante desconfiado da esposa Najmeh (Soheila Golestani), e das filhas, Rezvan (Mahsa Rostami) e Sana (Setareh Maleki), que questionam algumas medidas do regime iraniano. 

Em meio ao caos político do país, o patriarca impõe restrições severas à vida de sua família. Logo acompanhamos diversos embates entre os personagens, que se esforçam para defender os respectivos ideais. A gravidade da situação é significativa já que, caso a arma – pertencente ao governo – não seja encontrada, Iman corre o risco de ir para a cadeia. 

Não é irrelevante o fato de o próprio diretor do filme ter sido condenado a oito anos de prisão pelo regime iraniano, que considerou os trabalhos de Rasoulof “ameaçadores para a segurança do país”. O realizador, então, precisou deixar o Irã para não ser detido. 


A ameaça do encarceramento – familiar para Rasoulof há anos – é importante para a história de “A Semente do Fruto Sagrado”, inclusive para as personagens femininas, que frequentemente se veem como prisioneiras do espaço doméstico. 

Em determinada cena, Najmeh demonstra preocupação com as filhas, argumentando que “lá fora é perigoso”. Não demoramos a perceber, porém, que a ameaça também se encontra dentro da casa, um ambiente significativamente violento.

Aqui, podemos estabelecer um paralelo com as justificativas de Iman para a manutenção do autoritarismo; segundo ele, é necessário lutar contra inimigos externos, já que “o mundo inteiro está contra o Irã”. Por outro lado, a violência contra os próprios cidadãos não parece ser levada em conta pelo protagonista. 


Em diversos momentos, as personagens observam os principais acontecimentos do país a partir de casa. Najmeh chega a ter medo de ser vista na janela de seu apartamento, pois, como esposa de um funcionário do governo, acredita que não deveria sequer observar os protestos contra o regime. 

Ao longo do filme, assistimos a uma mescla de imagens ficcionais com vídeos reais do Irã contemporâneo, em especial de manifestações contra o regime. Esses registros nos fazem compreender a relevância do tema abordado na tela: em 2022, a jovem Mahsa Jina Amini foi presa pela polícia iraniana sob a acusação de usar o hijab de maneira inadequada, descumprindo o código de vestimenta imposto pelo governo.

Segundo relatos, Amini teria sido espancada pelas autoridades e, três dias depois, foi encontrada sem vida. O ocorrido revoltou parte da população iraniana, que tomou as ruas em protestos contra a violência. Muitas das imagens reais são chocantes e evidenciam o caos político do país. 


O ato de filmar, aliás, também é importante para o universo ficcional da produção; o gesto é realizado por jovens que se manifestam contra o regime, ao passo que também é reproduzido pelo personagem Iman, numa tentativa de intimidar sua família. 

A partir do longa, podemos refletir que as mesmas imagens podem ilustrar narrativas díspares. Enquanto (parte dos) registros de repressão policial são mostrados pela mídia oficial como uma reação justa às ações de “vândalos”, veículos independentes exibem os vídeos e chamam atenção para a violência à qual os manifestantes são submetidos. 

Por motivos óbvios, o diretor tem consciência de que a câmera é uma ferramenta de poder, que pode ser utilizada para finalidades diversas. Em entrevista ao NYU Program Board, Rasoulof comentou sobre a produção e, ainda, sobre a importância de continuar a filmar: “Eu acho que você pode ser cineasta na prisão [...] Você ainda pode ser cineasta, mas então se torna um cineasta sacrificado pela censura. E eu pensei: tenho tantas ideias na minha cabeça que realmente quero realizar, e é isso que devo fazer”. 


O desenrolar do filme evidencia que o diretor de fato tem talento para contar histórias, já que torcemos muito pelas personagens e nos angustiamos a cada adversidade que elas devem enfrentar. Como mencionamos, a ameaça da prisão logo se transforma em realidade para as mulheres da história, que passam a se sentir encarceradas em ambientes familiares.

Com um ritmo eletrizante, “A Semente do Fruto Sagrado” é eficiente em prender a atenção do espectador ao longo de quase três horas. Nos encontramos vidrados em diferentes momentos do filme, que também promove reflexões sobre as particularidades de governos (e sujeitos) repressores ao redor do mundo. 

O tema não deixa de ser atual: precisamos pensar exaustivamente sobre as muitas violências contemporâneas, externas e domésticas. Bastante perspicaz, o olhar de Rasoulof com certeza ocupa um espaço significativo nesse processo.


Ficha técnica:
Direção e roteiro: Mohammad Rasoulof
Distribuição: Mares Filmes
Exibição: Cine Una Belas Artes - sala 3, sessão às 15h20
Duração: 2h46
Classificação: 14 anos
Países: Alemanha, França, Irã
Gêneros: drama, suspense