05 novembro 2025

"Dollhouse" é uma obra que relembra a elegância fria do j-horror clássico

Incursão do diretor Shinobu Yaguchi no gênero terror tem semelhanças com "Annabelle", da franquia "Invocação do Mal" (Fotos: Sato Company)
 
 

Wallace Graciano


Obra resgata o medo silencioso da mitologia japonesa. Uma carta de amor ao gênero que se arrasta, mas não decepciona. Preciso jogar limpo, caro leitor. Nunca havia visto um filme sequer do diretor Shinobu Yaguchi. Porém, ao procurar sobre sua carreira, ficou claro que ele sempre foi sinônimo de leveza e superação jovial. 

Talvez por isso, sua incursão no terror, gênero que exige peso e introspecção, me despertou uma extrema curiosidade ao receber o convite para assistir "Dollhouse". E posso falar que ele não precisava assinar sob pseudônimo, como o fez. Afinal, o filme não apenas abraça o J-Horror clássico, mas o faz com uma convicção surpreendente.


Distribuído no Brasil pela Sato Company e com estreia nesta quinta-feira, 6 de novembro, "Dollhouse" é uma obra que se apoia na estrutura previsível para, justamente, construir sua força. 

Aqui, o clichê é uma homenagem, e a repetição do ciclo de maldição evoca a tradição de "Ringu" e "Ju-On", obras tão aclamadas pelo público. Abaixo, explico o porquê.

O clichê do trauma e da tragédia

De cara, podemos falar que "Dollhouse" não economiza em tragédia inicial. No filme, conhecemos Yoshie (Masami Nagasawa), uma mãe traumatizada após a perda da filha, Mei em um brutal acidente doméstico com uma máquina de lavar. 

O luto da matriarca é a verdadeira semente do horror. Incapaz de seguir, ela preenche o vazio com uma boneca ningyō ikiningyō, um artefato realista do período Showa.


Cinco anos depois, a paz do casal Yoshie e Tadahiko (Koji Seto) é desfeita quando a segunda filha, Mai, encontra a boneca esquecida. O que começa como um drama familiar de negação se torna um pesadelo psicológico: a boneca, agora chamada Aya, manifesta um ciúme possessivo, deixando hematomas em Mai e reivindicando, de alguma forma, seu "lugar de volta".

A narrativa atinge sua elegância fria ao transformar o luto em uma entidade viva e ameaçadora. O terror se constrói no som do vento, no ranger do assoalho da antiga casa e na frieza assustadora da boneca. 

Yaguchi demonstra um entendimento profundo de que o horror japonês funciona melhor no silêncio e na sugestão, ancorando a narrativa na superstição e na cultura japonesa de rituais com bonecas.


Falta um pouco de ritmo

Visualmente, "Dollhouse" é impecável. A fotografia em tons azulados e a direção de arte minimalista transformam o cotidiano da casa em uma fonte de angústia. 

Somado a isso, podemos dizer que as atuações seguem a mesma tônica, com Masami Nagasawa transmitindo, sem explorar o pieguismo do drama, a dor e a fragilidade de Yoshie, bastando apenas dar um olhar vazio que comunica melhor do que qualquer diálogo. 

Porém, o filme tropeça em sua ambição. Embora o terror se aprofunde com a aparição do sacerdote Kanda (Tetsushi Tanaka) e a exploração da mitologia da boneca, o roteiro chega a trazer um pouco de bocejos. 


A longa jornada do casal para tentar incinerar o objeto amaldiçoado, incluindo contratempos e até momentos de humor macabro, torna o clímax excessivamente prolongado. 

No fim, "Dollhouse" é uma obra dolorosa, elegantemente dirigida e profundamente humana. É um filme sobre o que acontece quando o amor se recusa a aceitar a morte, transformando o luto no verdadeiro fantasma. 

Yaguchi, se era tido como um mestre da comédia por quem o viu (não este que vos escreve, mas que confia demais no julgamento), se revela um promissor artesão do terror.

O que achamos de "Dollhouse"?

"Dollhouse" é um retorno bem-vindo e sofisticado ao terror japonês de raiz, ancorado em grandes atuações e uma mitologia assustadora. Apesar de um ritmo desigual e um clímax alongado, a força da sua construção atmosférica e o peso emocional o elevam acima da média do gênero.


Ficha técnica:
Direção: Shinobu Yaguchi
Distribuição: Sato Company
Exibição: nos cinemas
Duração: 1h50
Classificação: 16 anos
País: Japão
Gênero: terror
Nota: 4 (0 a 5)

04 novembro 2025

“Quando o Céu se Engana”: um caos celestial divertido sobre erros e acertos

Keanu Reeves interpreta um anjo insatisfeito com seu trabalho que quer mudar a vida de seus protegidos (Fotos: Lionsgate)
 
 

Maristela Bretas

 
Para quem curte uma comédia leve sobre caos celestial, crise existencial, duas pessoas vivendo situações sociais opostas e um anjo cheio de boa vontade, mas atrapalhado, vale conferir “Quando o Céu se Engana” ("Good Fortune"), que estreia nesta quinta-feira (6) nos cinemas.

No filme, Keanu Reeves troca as armas e os ternos de John Wick por asas, ainda que pequenas e um tanto amassadas. Ele interpreta Gabriel, um anjo da guarda "basiquinho", encarregado de proteger motoristas distraídos que insistem em checar o celular enquanto dirigem por Los Angeles. É uma função burocrática, repetitiva e desinteressante para alguém que sonha com promoções celestiais.


Cansado de salvar motoristas distraídos e de preencher relatórios espirituais sobre “intervenções mínimas”, Gabriel decide provar que pode fazer mais. O problema é que, ao tentar “melhorar” a vida dos humanos que protege, ele bagunça completamente o sistema celestial — e a vida de dois homens na Terra.

O primeiro é Arj, vivido por Aziz Ansari, que também assina o roteiro, a direção e a produção do longa. Ele é um cara honesto, espirituoso, mas completamente sem sorte — dorme no carro, vive de bicos e tenta manter a dignidade em meio à precariedade moderna. Com tantos pontos contra, Arj não vê sentido para sua vida e Gabriel acompanha tudo isso com preocupação.


O segundo protegido é Jeff, interpretado por Seth Rogen, um milionário superficial que tem tudo, mas vive entediado e não se preocupa com o mundo normal, apenas como seus carros importados e banhos especiais.

Em um momento de “excesso de zelo celestial”, Gabriel decide trocar as vidas dos dois para que saibam as dificuldades e os prazeres que suportam. Arj acorda na mansão de Jeff, e este, em pânico, se vê vivendo em um carro velho, cheiro de batata frita fria e tendo de procurar empregos de baixa remuneração para sobreviver.

“Quando o Céu se Engana” é uma comédia de erros divina em que as boas intenções de Gabriel podem levá-lo a uma reavaliação profissional por parte de sua chefe, Martha, interpretada por Sandra Oh. A ponto de ele precisar viver as dificuldades de ser humano.


Humor afiado com toque filosófico

Aziz Ansari acerta ao equilibrar comédia absurda com reflexão existencial. A troca de corpos, um clichê clássico do cinema, aqui ganha novas camadas:
- O rico descobre o valor das pequenas coisas;
- O pobre percebe que o dinheiro pode ser uma prisão disfarçada;
- E o anjo percebe que talvez os humanos não precisem de salvação, mas de empatia.

O humor é rápido, inteligente e muitas vezes autodepreciativo. A cena em que Gabriel tenta “corrigir” a confusão usando um aplicativo de mensagens para anjos é puro caos tecnológico celestial — com Keanu Reeves entregando uma das atuações mais cômicas (e estranhamente doces) de sua carreira.


Crítica social com boas risadas

O longa também fala sobre classes sociais, culpa, ego espiritual e a eterna busca humana (e divina) por propósito. Ansari faz humor com a desigualdade sem parecer cínico, e Reeves traz um anjo confuso, frustrado e adorável — quase um funcionário público do além.

Seth Rogen, por sua vez, interpreta o milionário Jeff com aquele equilíbrio perfeito entre arrogância e ingenuidade, tornando sua “queda terrena” uma das partes mais divertidas do filme.

Keanu Reeves prova que pode ser engraçado sem perder a alma, Aziz Ansari reafirma seu talento como contador de histórias. “Quando o Céu se Engana” é uma comédia leve, espirituosa e cheia de coração, que lembra o público de que errar — mesmo no céu — faz parte do aprendizado. Entrega exatamente o que promete: uma bagunça divina com coração humano.


Ficha técnica:
Direção e roteiro: Aziz Ansari
Produção: Lionsgate
Distribuição: Paris Filmes
Exibição: nos cinemas
Duração: 1h39
Classificação: 12 anos
País: EUA
Gênero: comédia